Quanto do corpo é capaz de abrigar nossas dores? O que permanece dentro, inabalado, após tudo aquilo que jorra e nos escapa? Como ocupar os vazios intrínsecos enquanto se desenha um novo mundo com as palavras? A poesia de Jaisy Cardoso alcança a nós, leitores, como um quente vendaval: nos convida a atravessar tantas inquietações seguindo o rastro vermelho de seu próprio movimento.
Dividido em quatro partes, poemas que escrevi enquanto sangrava encanta ao capturar com delicadeza as profundidades de uma mulher que carrega em si outras e tantas mulheres, numa façanha ancestral de habitar suas semelhantes; as dores pulsantes de um útero em luto, o vazio impreenchível de uma quase-mãe; os desejos que ainda a fazem viva; e o afeto que lhe reconfigura, fazendo reverências a todos aqueles que se movem com o seu renascer.
Em sua estreia, a autora dita o passo dessa dança de cor rubra. Cada poema disposto aqui traz sua maior assinatura: a capacidade de dobrar-se para si em contemplação de todas as minúcias, de cada detalhe vívido em suas entranhas. Esta mulher que sangra habita ambivalências — ora completa pelas presenças daquelas que ainda virão e aquelas que aqui passaram, ora dilacerada pelo oco de uma perda irreparável. A mulher-bailarina, de borboleta a búfala, escancara para quem a lê sua maior e indomável força, mas também a carne viva de seu maior abismo. Da dureza que recobre seu corpo ferido, Jaisy não se rende: sua poesia, sua vida e seu desejo ainda pulsam, ela ainda vive e ainda sente. E o mesmo corpo quebrado é o corpo que arde de paixão, de libido, de amor e de vontade de viver.
Entendendo tudo sobre pequenas coisas, os poemas não muito curtos que Jaisy Cardoso nos apresenta brilham no ato certeiro do seu fazer poético. A autora escreve com segurança e sensibilidade fascinantes. Entre as imagens tão presentes do fogo, dos ventos e do sangue, Jaisy não esquece do material aquoso, de tal forma que seu livro de estreia guarda em suas linhas uma sabedoria ancestral que Conceição Evaristo já desenhou com suas negras mãos: as águas que passam, enquanto as pedras ficam, são aquelas que da autora-faísca pulsam e jorram e abrem o caminho para transpor todo o resto. Jaisy faz todos voarem para apreciar em suspensão a glória do seu renascimento e a recriação dos caminhos. Lendo-a, é possível entender tudo o que sangra para se refazer. Daqui do alto, assisto a sua alvorada tingir seu corpo das cores iansânicas — e há beleza em acompanhar seu trajeto ascendendo.
Pablo Emmanuel