Quem acessa as Perspectivas da escarpa (em signo de pluralidade já no título) se percebe imerso, de imediato, em uma nítida construção de poesia plasmada numa cosmopercepção — explico, estaríamos mais afeitas/os, talvez, ao termo cosmovisão: tributárias/os de uma ocidentalidade calcada no audiovisual, mas a miríade de versos e imagens aqui urdidas nos lança em outra matriz de tempo. Estevão Machado invoca o animismo: apesar de parecer uma poesia do olhar, nascida de flanagem e de atenta observação, não repousa em uma cosmovisão, porque convoca a experiência dos sentidos em sinestesia — uma ciranda de sentires, de habilidades para encontrar onde no corpo leitor reverberam as pontas afiadas do verbo trançado em palavra, em cal, em som, em pedra, em sol pela teia do poeta.
Da parte baixa do íngreme relevo, elege a perspectiva de quem “mina de dentro” — expressão que é minha teoria da potência de revolvição pelo caminho miúdo, interno — as estruturas da cidade e das próprias palavras (aqui o poeta revela seu dna cabralino). Para além das filiações que explicita com Alberto Cunha Melo e outros antecessores neste ofício de “dos sonhos dos homens inventar uma cidade” (evocação a Carlos Pena Filho), Estevão escolhe a via menor, a sutileza das águas, capazes de derrubar arranha-céus, para conferir voz ao que habita o mais fundo.
O poeta lança o convite-desafio, sua “proposta de reassentamento” feita por “mãos calejadas na vontade de durar”. Não almeja pouco: a escolha das tantas perspectivas é estratégia de quem quer cerzir “a beira da vida ribeira”, arquitetando encruzilhadas. De sua cidade-terreiro desfolha uma poesia que não oculta sua face política, rasga “na carne morta dos mangues” e escancara as “novas senzalas de zinco”. Sentencia, com a força do anímico, o poder das pedras, dos tijolos que carregam o suor de quem neles trabalhou, e estanca a percepção linear do tempo e da geografia. A partir dos arrecifes (ecoando Cícero Dias, “Eu vi o mundo… e ele começa no Recife”) deambula pelos quatro cantos da esfera e revela “as cabeças dos homens/entre os vãos do tempo”, para emitir a dureza do aviso, sua carta em uma garrafa à cata de nós, leitoras/es: “a ruína da democracia é a falência da fala”, por isso a poesia a reinstaura no estreito fio da navalha. Que o prazer da descoberta destas trilhas na escarpa acorde o que há de gente em nós: evoé, poeta!
Renata Pimentel
Poeta, escritora, professora, artista do teatro, da dança e do audiovisual