Houve um tempo em que eu lia os poemas de Eliza como se eles fossem pequenos romances, caçando personagens, tramas, enredos. Quase vinte anos depois, descubro que, enquanto eu caçava a história, Eliza sempre caçou o poema: essa coisa imensa. Na sua poesia, “a palavra é um animal que dorme com fome”. A partir desses objetos vibráteis, ela cria uma composição extraordinariamente complexa, feita de materiais heterogêneos e dispersos: os dias, os pés, a escrita, a cidade, o amor, a eletricidade, a família, a fumaça, os dentes, a casa, os pratos, a comida, o cachorro, alguém, um trovão.
Gosto de pensar que Eliza escreve o paradoxo. Nos seus poemas, esse procedimento pode ser observado no ponto exato onde os contrários se tocam. Escrever o paradoxo é habitar a linguagem de outro modo, trocando as coisas de lugar, desencaixando palavra e sentido, expectativa e intenção. Nessa artesania com as palavras, Eliza produz a rachadura necessária.
Talvez a essência do paradoxo seja provocar certa perturbação — como a imagem de uma rachadura necessária. Algumas dessas perturbações, presentes em Os dias ou os dentes, são incrivelmente sedutoras outras me provocam desassossego, curiosidade, não sei dizer.
Imagine seios que dão de comer às mãos. Imagine uma língua grudada numa panela quente. Imagine uma casa com febre. Imagine uma pergunta que nenhuma lâmpada incandescente é capaz de responder. Imagine um poema com raiva entre os dentes. Imagine um paradoxo.
O movimento dos poemas cria um inventário de imagens que intensificam essa noção. O paradoxo como figura daquilo que só podemos expressar — e mesmo assim parcialmente — a partir de certa confusão ou de um certo desafio que se faz à linguagem.
Essa coleção de paradoxos está presente desde seu primeiro livro O caderno das inviabilidades (editora Urutau, 2017), criando uma espécie de eco entre as duas obras e consolidando Eliza Caetano como uma das vozes mais singulares no cenário da poesia contemporânea brasileira pela ousadia de não se submeter a nenhum tipo de regra ou modelo poético. Ao abrir um atalho próprio dentro da poesia, Eliza nos convida a ver, pensar e sentir a linguagem a partir desse objeto meio mágico/meio trágico que é o poema.
Flávia Péret