Literatura é sonhar acordado, viver, por um momento, não no mundo real, mas em um mundo inventado por nós. Essa é a sua essência, que, quase que oculta no romance realista, se desvela à luz do meio-dia na literatura fantástica, à qual tantos escritores latino-americanos fizeram suas contribuições.
Marcela Fassy, que desde o seu primeiro livro, Animais Cinzentos, se filia a esse gênero, aposta, em seu Oniros, na natureza onírica da literatura. Os , (em grego onéiros, pl. oneíroi), isto é, os sonhos, são figuras mitológicas que, em Hesíodo, aparecem como filhos da Noite e irmãos do Sono, da Morte e da Velhice. São criaturas das sombras, a habitar a fronteira entre o caos e a forma.
Os estudiosos, de Freud à neurociência, lhes atribuíram diversas funções. Gosto de pensá-los a partir de Susan Langer, para quem o ser humano possui uma profunda necessidade de simbolização, meio pelo qual o caos das impressões sensíveis se tornam para nós inteligíveis. Pois esse é, assim creio, um dos papéis dos sonhos, que eles compartilham com a literatura.
Não somos animais racionais por inteiro. Dentro de nós habita a luz da razão, mas também sombras, tão próximas do sonho e da literatura fantástica. Adentrar nessa dimensão que faz parte inescapável de nossa existência, tal como em uma katábasis de um herói épico, eis a experiência que encontramos neste livro.
Em alguns dos sonhos narrados, temos a simbolização de alguns dos nossos mais profundos desejos: a juventude perdida, o encontro improvável, a reintegração a um estado paradisíaco, ainda que impermanente. Mas Marcela, desde Animais Cinzentos, também se aproxima, em sua escrita, daquela literatura de terror que tem em Edgar Allan Poe o seu mais insigne modelo. É por isso que muitos destes sonhos são, na verdade, pesadelos, manifestações de nossos medos mais viscerais, aqueles que só ousamos confessar a nós mesmos logo antes de dormir ou quando acordamos no meio da noite: a fragilidade diante da violência desmedida, a transmutação para um estado inferior do ser, o completo desaparecimento.
Este é um livro para se ler no escuro. Mas, paradoxalmente, para lê-lo, precisamos de luz. Pois penso que estes contos, nessa síntese entre medo e fantasia, são como uma clareira que, em meio às sombras que se ocultam em nossas profundezas, nos permite simbolizar o desconhecido e caminhar, mais lucidamente, por entre os desacertos de nossa existência.
Bernardo Lins Brandão