Neste O tráfico de órgãos na poesia brasileira, o segundo volume de uma trilogia poética que se iniciou com Insta fantasma (Urutau, 2021), desde o título o leitor é apresentado a uma imagem — o tráfico de órgãos — que sintetiza a reificação e radicaliza sua expressão. Se, desde os anos 1980, o tráfico de órgãos assustou, no noticiário, o imaginário brasileiro, hoje se trata de um assunto quase esquecido, deflacionado na nossa infindável lista de preocupações. Gabriel Morais Medeiros recupera esse passado para nos lembrar, com certa nostalgia sadomasoquista — “o passado/em devastação” —, que os terrores do neoliberalismo fascista dos dias de hoje já se anunciavam no neoliberalismo vanilla das décadas de 1980 e 1990. O tráfico de órgãos, assim como o turismo de transplante e o turismo sexual — temas recorrentes nesta obra, entre outros —, são consequências, todos sabem, de um projeto de precarização já antigo, mas que agora se pornografiza.
Assim, o poeta assume a “posição fetal/passiva ante a netflix” para descrever e enfrentar o tempo, enquanto o tempo no capitalismo lentamente acaba. Estamos todos presos neste pesadelo, como no “feed do insta-fantasma” que não cessa de se atualizar, uns agonizando mais do que os outros, vislumbrando pelo “google glass adaptável/aos escudos faciais/apple watch em sincronia/co’a guarita antimendigo” um futuro que promete terminar por nos devassar, porque não há “fuga do mundo dos mortos”, mesmo com “‘sonho por sonho’ à playlist”, mesmo com “a minissainha voandinho”.
[Arthur Araujo, escritor]
Depois de tanto destroço social, do lixo e da glória televisivos, dos primórdios da internet, das décadas de neoliberalismo, dos antigos videogames, afinal, há vários fantasmas dos anos 90 dando voltas na poesia de Gabriel. O “et de varginha”, várias vezes citado, é um primor, é uma assombração cômica e recorrente. Diante dessas voltas, devemos talvez retornar aos primeiros poemas, procurar pelo bonito nome de Luane ou pela declaração à “pesseguinha”. Porque em meio aos ruídos dos ossos urbanos, em meio a tudo isso, há o afeto: “[…] seus bocejos flébeis, gráceis ao fim de tudo, enfim, nossas delicadezas alegres, travessuras, de verdade, inesquecíveis”. E ao afeto, Gabriel Medeiros dedica os poemas mais extensos.
Maíra Vasconcelos,
poeta e jornalista