Sozinha, Maria, uma senhora já idosa, observa o cair da chuva pela janela de casa em uma cidade periférica do Distrito Federal. Enquanto elucubra a respeito do significado da velhice para si e para os outros, põe uma panela com água no fogo para preparar o almoço. O que o ocorre em seguida acarretará marcas com as quais ela e seus filhos irão conviver até o fim de seus dias.
Maria nasceu no interior de Minas Gerais e foi vendida pelo pai para trabalhar como doméstica na casa de uma família em Brasília. Não por acaso a narrativa é tecida a partir do viés do esquecimento: a história dessa “candanga” (por falta de palavra melhor), uma mulher que veio parar em Brasília sem nenhum ente familiar — tendo que morar na casa de estranhos que eram também seus patrões —, não é somente a história de Maria, mãe de Pedro e Miguel. É também a de muitas mulheres, seja do interior de Minas, do Maranhão ou do Piauí. Essas mulheres, apesar de esquecidas quando se conta sobre a criação de Brasília, desempenharam um papel importantíssimo, sem o qual o conforto de algumas famílias estaria em risco, e a existência de outras — as suas próprias — não teria lugar.
Um dos grandes trunfos desta obra — longe de ser o único — é justamente a recuperação dessa história invisibilizada, e muitas vezes traumática, das migrantes que hoje compõem a população da capital, deixando um legado para filhos e netos. Somos ainda presenteados com uma trama mais complexa, conduzida com maestria e lirismo pelo autor. A narrativa, atravessada por várias vozes, nos sensibiliza com reflexões ligadas ao envelhecimento, ao Alzheimer, à solidão, ao abandono, à bissexualidade, à fotografia, às relações familiares e ao amor. Por fim, durante esse mergulho em uma densa atmosfera em tons de sépia, somos tocados pelo amor, que, nas palavras do autor: “(…) não nasce da embriaguez do toque, mas começa com o sentimento de ter capturado um fragmento, uma tira singular recortada de um sonho ou do tecido infinito do universo […]. O amor é aquilo que permanece, dia após dia, dourado pela memória”.