O poemário começa cumha operaçom de camuflagem, a ilha converte-se no corpo dela, ou ao contrário ela converte-se na ilha. Nestes casos, toda panorámica é autorretrato. Ela nom sabemos quem é. As poetas sempre, por respeito à venerável retórica, falam em primeira persoa. Depois temos a sensaçom de que Penas deixou a porta aberta, para que entrassem outras vozes, outros corpos. Como o corpo está camuflado, provavelmente por lama, ou cinsa vulcánica, nom reconhecemos bem quem som as outras que estám a falar. Umha voz dirige-se a um filho (a um desses filhos que sempre aparecem nos poemas): “Deverás ir armado de ontem até os dentes”. Outra voz afirma: “Posso conhecer umha cidade polo latido dos cães”. Quem diga isso tem que vir de moi longe, de moi atrás. É alguém que ainda lembra a fala dos cans. Andando o livro, levantam-se silhuetas femininas sobre a paisagem ocre baixo o céu limpíssimo, mulheres, nenas, velhas que falam coa boca cheia de terra. Som vozes que aparecem por primeira vez nos versos de Silvia Penas. As vozes falam de cousas que a poeta galega nom pode saber pola própria experiência. Ela vem dumha terra que ignora a sede, e onde o mar é manso e familiar como a horta que contorna a casa. Criaturas que pedem para falar, mulheres das ilhas que descolonizam para sempre o poema e coa sua voz escacham todas as cámaras dos turistas: “Há uma mulher a meio chorar, pelos cantos, suplicando amor, um gesto, umha moeda, suplicando amor”. E essa mulher fala, e escuta, espantada, a visitante. Atrás dela, tomárom a palavra as mulheres do país, e o verso fijo-se teatro. Entendendo por teatro o lugar onde a poeta deixa que falem as demais. “A minha saia abanada pelo desejo da chuva”, di o coro. Nom vou continuar a indicar versos, a citá-los. Dixem algúns que se levantaram do testo terroso e salobre, e apelarom-me directamente. Cada vez que aparece a palabra “cão”, “cães”, estremeço, e vejo-me de novo ali, olhado polos cachorros dos terraços. Talvez a outra persoa nom lhe diga nada, e será noutro verso, que para mim seja inócuo, onde aparecerá o resplendor para outra persoa. As instantáneas de Penas aparecem umha atrás da outra ante os meus olhos, e as minhas fotos, excepto umha, vam perdendo nitidez diante do teatro propiciatório da poesia. Eu também amei em Cabo Verde, mais nom lembro que fosse tam arrassador e conmovente como a estória de Penas. Hai turistas que nom saem dos hotéis dos trópicos por medo a topar com o corpo, com o povo, com a vida. Talvez eu seja um desses agarrado prudentemente ao daiquiri. A autora deste livro, nom, desde o primeiro dia saiu do hotel atravessando o muro de cristal que incluem no preço os tour operators. Ela saiu e “empunhou a vista, empunhou o fundo dos olhos” e percorreu o seu corpo, o seu teatro, rápido, rápido até o último verso, e o resto é céu.
E assim, o céu passa a ser, na voz poética de Silvia Penas, sinónimo de silêncio.
Quico Cadaval