A poesia fere com delicadeza, mas não na acepção violenta que esse verbo sugere. Ela fere abrindo veios nas gramáticas do sentir, rasgos cuja profundidade ou extensão não são mensuráveis a não ser, talvez, pela pujança com que umas poucas palavras de poeta nos arrebatam. O céu das pequenas criaturas, primeiro volume de poemas de André Tessaro Pelinser, é um livro repleto desses momentos de franca epifania: visões da amplitude e percebimentos de miudezas que, articulados com segurança pelo autor, traduzem a experiência que não se esgota na representação de um tempo acelerado e pandêmico porque atenta às feridas mais profundas do sentimento do mundo.
A referência acima ao poema-livro de Drummond não é gratuita. Há muito do poeta de Itabira na linguagem sopesada de Pelinser, nos gestos comedidos das palavras mais melancólicas, na segurança que esconde e revela o ser político, na economia sintática que nunca é trivial, ainda que pareça comezinha. À medida que os poemas formam suas próprias constelações — “confinados”, “abandonados”, “empesteados”, “injustiçados”, “ressecados” —, leitoras e leitores talvez se lembrem, como eu, das palavras célebres do narrador Rodrigo S.M. no início de A hora da estrela: “Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho”. É, portanto, com simplicidade laboriosa e muitas vezes desconcertante que o poeta rasga a tranquilidade dos consensos hipócritas: “nem toda a cultura do mundo/é capaz de nos salvar da civilização”.
Uma orelha de livro não é, certamente, o melhor lugar para se tentar apresentar um novo conceito, mas há nos versos deste volume algo que só consigo descrever como vivez, uma vivência única e irrepetível do mundo que parece adquirir forma e linguagem no momento da leitura para desaparecer logo em seguida, assim que os breves poemas de Pelinser retornam ao silêncio de todas as coisas. O céu das pequenas criaturas é o espaço da vertigem do possível, “da escola da perda”, do “mercado do desespero”, do “gozo da destruição”, do “oco do mundo”. Lugar para onde inevitavelmente nos precipitamos todos, em uma queda para o alto que só a poesia consegue traduzir com delicada revolta e fereza, como a imagem de um Ícaro que possui “todos os voos/nas pontas dos dedos/na sola dos pés”.
Berttoni Licarião