Belo Horizonte, setembro de 2020.
À beira-mar, prenunciações alertam tragédias irremediáveis por ligações inesperadas em horários desajustados. À Bahia, porto de início da História, tecla botões incontroláveis, bipes do outro lado da linha e o segredo — costelas precárias partilhadas de um homem milênios vésperas de Cristo não mais se firmam, e, insustentáveis, cobram o preço da fé e proíbem o corpo de pé: faça-te própria de tuas carnadura, mulher. À efígie do incontestável de rezar às imagens sacrossantas, devotar-se a altares com mulheres de seios cobertos, fios disfarçados e lágrimas escarlates da Virgem Maria do México à Itália. Àquelas horas de fulminação, revelou-me o pior: queria perder-se na palavra, e, do verbo, criar-se em carne. Respondi: desconheço ameaça maior à sanidade, tratar à língua a pornografia do corpo de mulher —– indecente parir e erótico amamentar, não diriam? Descobriu não se caber mais em sete letras cabalísticas de Mariana: conceder à poeta a permissão do corpo?
Às páginas, o útero a germinar a brutalidade de letras rabiscadas à mão pela escritora que reúne nas pontas dos dedos a glória de construir-se como poetisa fundamental — descreve-se aqui o que encontrará o leitor às folhas paridas: caracteres gemidos de dor com a hostilidade da substância a amealhar ancestralidade, esculpir-se em raízes de árvores imbricadas à terra (não foram elas, mulheres que primeiro aqui chegaram?). À resposta indissolúvel de indagações seculares, a literata que se apresenta às próximas laudas reverbera: onde é que se encontram nossas radículas de mulher? Lugares por onde são penetrados nossos corpos?
Fatal, ninguém teceria escrituras tão sagradas como ela a nascer e morrer com dores intrínsecas a seios que pedem pela boca da menina: literatura com cheiro de fêmea, prévia de catástrofes, porque, quem, não sendo mulher, poderia dedicar amor que não pela devoção da palavra? Não se esquecer antes de mergulhar à poeta mais doce de Minas Gerais (que aguardem territórios tupiniquins), que aqui não serão fáceis narrações sobre filhos ou cabelos molhados de rio — o inédito de Mariana não cabe no bucólico deixado às caixas, no modernismo inexperiente ou no contemporâneo lançado. Apontaria-a como Adélia Prado e Hilda Hilst do século à espreita, e o livro a abrir-se expõe ameaças irredutíveis da literatura que a invade em noites insones.
Em segredo, a nós: pode haver amor maior que pedir dedicação à orelha? Repetirei-a também na antologia poética de Mariana Cardoso Carvalho, que dista apenas uma ou três décadas de trajetória inadiável.
Lara Alves