_sobre este livro
O mito de Narciso pode ser entendido como uma condenação moral à vaidade, bem como o pasmo da descoberta do eu, do corpo — nosso (des)limite, uma equação móvel cujas variáveis abrangeriam o funcionamento fisiológico, o aparelho psíquico, atravessados pelo entorno, estímulos incisivos, ubíquos.
Essa equação flutuante funcionaria como um “preâmbulo epigráfico” de Exercícios de ser e não ser, de Diogo Rufatto. O livro sonda três temas que não raro se imiscuem: a identidade, o verso, o erótico. Diz-se sondagem devido ao modo como a voz ali o faz: via relato poético, procedimento que parece colher algo do “narrar inquirindo” de Montaigne, do sensacionismo de Pessoa. A voz poética divaga ensaisticamente quão esquizo se pode ser: “Nos incômodos do existir / encontram-se os não seres”. Talvez por uma herança simbolista, Rufatto usa da musicalidade (em rimas, aliterações) que ora sugerem fluidez entre os “seres do ser”, ora, ruptura na passagem, via fonemas do /s/ e /t/.
Tal dicotomia viria como um pêndulo examinador em que numa ponta há a psicanálise acessando a latência do eu, noutra, a antropologia pensando as práticas da comunidade: o “eu é um outro” rimbaudiano toca numa “antropologia especulativa” (Saer) dessa legião de si assombrando o eu. Para tal, o erótico vem como negaceio no processo (Bataille), tangenciando o interdito, a violência, esses limites intricados que colocam o sujeito na civilização, mas que, brutos ainda, tangenciam a barbárie do instinto. E no espelho, esse grande outro, “imagem — tu que sou eu”, o leitor vislumbrará a ambivalência da tosquidão de um “ser urso” e a sofisticação do eu erótico dissimulando desejos para “Tudo atravessar / o fogo, o verso, o instante”.
Paulo Caetano