Em Enterro das Rãs, a memória não é a construção do espaço/tempo alicerçados na nostalgia de seus personagens e narradores, mas sim elemento central da constituição de uma jornada de amadurecimento e desencanto.
A partir de uma tragédia, um atropelamento na Anchieta, acompanhamos dois olhares: o de Murilo, sua relação com os amigos, suas peripécias, seu assombro com a realidade que o rodeia, a tentativa de se localizar dentro de um mundo em que tudo ao redor está prestes a se desmanchar; e o do narrador Filipe, um dos amigos de Murilo, que perambula por uma narrativa em que o próprio tempo se quebra e o mundo perdido encontra-se no espaço um tanto intangível pela memória e pela escrita.
O que Filipe Bonita nos apresenta, então, é um romance híbrido: ao mesmo tempo em que recupera uma São Bernardo do Campo dos anos 1990 cortada por uma rodovia em que rodas e pneus “empurram o tempo para trás”, estabelece a metalinguagem como reflexão sobre o poder e os limites da ficção.
Ficção esta que se demonstra consciente do seu tempo, de seus temas e de sua forma, já que perguntas milenares sobre a natureza do real e do literário se fundem com a própria edificação do narrar, ou seja, por mais que o contemporâneo se apresente fragmentado e fugaz, a Literatura aqui é resposta ao efêmero e ao mundo desencantado.
Se “os anos 1990 pareciam ter sido em outra vida”, é essa outra vida que a ficção de Filipe Bonita tem como foco. E o leitor, portanto, ao se deparar com esta obra, encontrará o que a Literatura faz de melhor: nos transporta para uma outra realidade a fim de potencializarmos nosso olhar sobre a nossa realidade própria.
Reinaldo Melo