Edgar Allan Poe dizia que o terror não vem da Alemanha, vem da alma. A literatura brasileira de terror pode brotar em qualquer hora e a qualquer lugar, como vemos nos contos de Dentro de mim mora a sombra, de Carlos Castelo. Pouco importa se estes terrores brotam em fazendas (“Eles sabem”, “A volta do ‘Noturno’”, “O boneco de pano” etc.) ou na metrópole moderna das conveniências digitais (“LukyBear”, “Carro de aplicativo”, “Julia saiu da sala” etc.). A fagulha do medo brota no instante em que o sobrenatural se infiltra. E ele parece se deslocar ao longo de uma dimensão onde não pode ser acessado pela tecnologia, mas pode interferir nela se lhe convém.
“Foi então que estranhos eventos começaram a acontecer” (“Cadeira vazia”). É neste momento de ruptura que a literatura de gênero arrasta para seu território aquelas ações humanas que, na narrativa mainstream, são regidas apenas pela psicologia convencional e pela reprodução mimética da realidade. Os eventos estranhos são tudo que não cabe no vocabulário de expressões que explicam a vida. Fatos intraduzíveis, como palavras que não têm equivalentes do lado de cá.
Estes eventos são ambíguos, contraditórios. Há sempre duas explicações: a do real e a do impossível. Daí que o terror precise lidar tantas vezes com cisões psíquicas, eu-dividido, o duplo, o reflexo que é diferente do rosto, a sombra que não obedece ao gesto da mão. Em “Coisa-feita”, “Dentro de mim mora a sombra”, “Julia saiu da sala”, vemos esse desabrochar do outro-ser numa pessoa comum: “Não sei quando me tornei o que sou” (“Coisa-feita”).
Daí também que esse universo do estranho precise da imposição de algum tipo de ordem, e que isto ocorra tantas vezes por meio do que chamamos de ritual. É o ritual (que os protagonistas executam movidos pela força primal da crença coletiva) o motor principal da ação em “O boneco de pano”, “A peeira”, “Pedra fria” etc.
O ritual que às vezes nos causa medo foi criado para exorcizar o medo de gente que viveu há milênios. É o resíduo cristalizado do Passado, de algo que sumiu do mundo, mas não sumiu da alma. A fidelidade às sub-rotinas do ritual acaba conferindo a elas um conteúdo emocional e estético, um cunho de inevitabilidade e prazer, como o que perpassa histórias como “O churrasco” e “Capelobo”.
Nos contos de Carlos Castelo, o terror é esse ritual que, em “Última história”, confunde realidade e ficção. Como se escrever histórias de terror fosse assumir o controle de tudo que nos amedronta.
Braulio Tavares, escritor e compositor