“Eu sou um monstro que lambe tuas feridas” se apresenta o narrador. Corpo disforme e deforme, sempre sujo de poeira, saliva e cinzas. Presença onírica e real, que cospe nas categorias. Ser corpóreo que sua permanentemente tentando aniquilar a assepsia (plásticos, máscaras, chuveiro, sal, mar…). Distancia obrigatória, presença inevitável.
“Como escapar da violência, do trauma, dos abusos, de um país que, institucionalmente, nos quer mortos, mortas, mortes? Como escapar da necropolítica?” se pergunta. Como escapar de uma pandemia que nos deixou expostos a feridas e fraturas — ancestrais sim — mas que agora devem ser enfrentadas sem paraísos artificiais? Como sobreviver sem abraços, sem contato e na onipresença de um vírus?
A resposta é um convite: narrativas, colagens, vozes multifacéticas que partem de um uno que se quer coletivo. Nas letras paleólogas, inquietude é a gasolina de uma mágoa ancestral, mágoa materna feita de invisibilidade e cabelo queimado. Lástimas seculares contra instituições, catedrais e colégios. Condolências que, no entanto, escondem uma fagulha que só precisa de um leve sopro, um pequeno passo para uma nova ordem que impede o morrer. O futuro é de sobrevivência.
Há o desejo de romper um mundo em ruínas que se materializa em outros destroços: as regras de léxico, de gênero, de forma… Pós-pós-moderno o texto aceita o apocalipse em vida, inferno cada vez mais evidente, desnudado pandemicamente dia após dia. O livro denuncia anos de abuso, anos de ser bicha enfrentando a pseudo-homens. Anos de resistência, de espelhos embaçados, de diálogos monologais, “fumando pra não enlouquecer”.
Páginas e páginas de uma literatura que não consola e talvez por isso mesmo acalante — não há espaço para paternalismo. Não há país, não há pai, talvez só uma velha mãe que abraça enquanto mete o dedo na ferida. Linhas e linhas de caos tempo-espacial coletivo, impasse de sistema virologicamente conectado. Como sair daqui, meu amor? A velha mãe prepara o dedo, oferece o colo e abre o livro. (This is no fucking bedtime story!).
Vivian Rangel