Cinzas da primavera

Disponibilidade: Brasil

O primeiro banho frio
sobre o novo corpo nu
(novamente estava só)
alcançou a fonte da calma
lavou a sede da alma
a água da solidão

Sob a cascata rala, o arrepio
na garganta muda, o nó
a pele como retalhos
à mostra nos cacos do espelho
as bolhas de sabão tingidas
pelo líquido vermelho

O vento brotou cortante
atravessou a porta aberta
espiou pela janela
do quarto que dá para a rua

cinzas da primavera
e foi assim, nua e fria
que pensou em desistir

Foi também que, num rompante
a inesperada visita
tomou seu lugar no batente
e restou que havia, enfim
um caminho no universo
que apontava além de si.

R$40,00

_sobre este livro

O tempo era como um insulto

livre, solto, sem limites

(Trecho do livro)

O que pode a literatura diante do corpo violentado?

Cinzas da Primavera, de Mariana Daher, é esqueleto em vias de esfarelamento para dor potente em dez episódios poéticos.

É luto que se ergue desde a entrada na obra, quando, ao fim da primeira estrofe do primeiro poema, lê-se o anúncio do “quase-fim”.

Leitora, tateei o quase-fim-feminino-limbo, procurando compreender a dor portal à insalubridade do eu lírico (expressão técnica, que, masculina, deixa de dar conta do universo feminino que o/a envolve, devora e regurgita).

De qual dor feminina estamos partindo? Me perguntei.

A resposta à minha intuição veio com “a vida que ainda brotava e/nem mais primavera era”.

Que escolha! Em coleção intitulada Mãe Leva Outra, Mariana compôs no entre-gênero (entre a prosa narrativa e a poesia) a negação à maternidade. Partimos da violência contra o feminino que se realiza cotidianamente inclusive na língua incapaz de tratar da mulher poética que se anuncia. Partimos da imposição masculina contra o corpo da mulher, partimos da violação; e seguimos pela escolha pela interrupção da vida.

“Olhares”, “piedade disfarçada” e “culpada, culpada!” pela própria voz revelam um pouco sobre o interior e o exterior social da atmosfera da obra.

É possível a uma mulher fecundada pela violência reencontrar a paz?

Aborto é tabu. Violência sexual é tabu. Liberdade feminina é tabu.

Cinzas da Primavera é fluxo de sangue, de dor, de pensamento e de movimento:

“Sob a cascata rala, o arrepio

na garganta muda, o nó

a pele como retalhos

à mostra nos cacos do espelho

as bolhas de sabão tingidas

pelo líquido vermelho”.

É experienciar junto do eu lírico feminino a queda ao mais baixo que o fundo do poço; e suas tentativas, no plural, de reestabelecimento:

“Nem percebeu o outono

pairando sobre a retina

varrendo com um sopro

as folhas marrons, caídas

dia após dia, e a rotina

retomando à força as rédeas”.

Cinzas da Primavera é luto e luta, moldada na resistência e na (re)existência da mulher que se reinventa em espiral; na interrogação sobre as estruturas em que se assentam os poemas de seu corpo-livro e os corpos da nossa sociedade. É obra que toca no que se vela.

Que o livro seja lido, que reverbere, e que rodas de conversa se abram sobre mais esse braço dolorido da maternidade que acontece, embora pouco se fale. Que a literatura, diante de corpo solitário, estabeleça conexões!

Carolina Manzato

_outras informações

isbn: 978-65-6035-011-3
idioma: português
encadernação: brochura
formato: 13x16,5cm
páginas: 32 páginas
papel polén 90g
ano de edição: 2024
edição: 1ª

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