O tempo era como um insulto
livre, solto, sem limites
(Trecho do livro)
O que pode a literatura diante do corpo violentado?
Cinzas da Primavera, de Mariana Daher, é esqueleto em vias de esfarelamento para dor potente em dez episódios poéticos.
É luto que se ergue desde a entrada na obra, quando, ao fim da primeira estrofe do primeiro poema, lê-se o anúncio do “quase-fim”.
Leitora, tateei o quase-fim-feminino-limbo, procurando compreender a dor portal à insalubridade do eu lírico (expressão técnica, que, masculina, deixa de dar conta do universo feminino que o/a envolve, devora e regurgita).
De qual dor feminina estamos partindo? Me perguntei.
A resposta à minha intuição veio com “a vida que ainda brotava e/nem mais primavera era”.
Que escolha! Em coleção intitulada Mãe Leva Outra, Mariana compôs no entre-gênero (entre a prosa narrativa e a poesia) a negação à maternidade. Partimos da violência contra o feminino que se realiza cotidianamente inclusive na língua incapaz de tratar da mulher poética que se anuncia. Partimos da imposição masculina contra o corpo da mulher, partimos da violação; e seguimos pela escolha pela interrupção da vida.
“Olhares”, “piedade disfarçada” e “culpada, culpada!” pela própria voz revelam um pouco sobre o interior e o exterior social da atmosfera da obra.
É possível a uma mulher fecundada pela violência reencontrar a paz?
Aborto é tabu. Violência sexual é tabu. Liberdade feminina é tabu.
Cinzas da Primavera é fluxo de sangue, de dor, de pensamento e de movimento:
“Sob a cascata rala, o arrepio
na garganta muda, o nó
a pele como retalhos
à mostra nos cacos do espelho
as bolhas de sabão tingidas
pelo líquido vermelho”.
É experienciar junto do eu lírico feminino a queda ao mais baixo que o fundo do poço; e suas tentativas, no plural, de reestabelecimento:
“Nem percebeu o outono
pairando sobre a retina
varrendo com um sopro
as folhas marrons, caídas
dia após dia, e a rotina
retomando à força as rédeas”.
Cinzas da Primavera é luto e luta, moldada na resistência e na (re)existência da mulher que se reinventa em espiral; na interrogação sobre as estruturas em que se assentam os poemas de seu corpo-livro e os corpos da nossa sociedade. É obra que toca no que se vela.
Que o livro seja lido, que reverbere, e que rodas de conversa se abram sobre mais esse braço dolorido da maternidade que acontece, embora pouco se fale. Que a literatura, diante de corpo solitário, estabeleça conexões!
Carolina Manzato