Carcaças de abissais

O Brasil está secando. A terrível Cortina de Areia imposta pelo governo expulsa o éter, impedindo seres sobrenaturais de conviver entre humanos. Eleições presidenciais se aproximam, e proliferam os conflitos entre os defensores de uma sociedade mais justa e os que preferem manter o status quo.

Porém, um diário antigo do Padre Anchieta é resgatado, e três jovens partem para a Amazônia em busca da Encantaria, a ilha mítica desaparecida durante a colonização. Se encontrada, a ajuda dos povos indígenas e seres encantados aprisionados há quinhentos anos poderá virar a maré.

Repleto de elementos da história do Brasil e da cosmologia tanto dos povos originários quanto dos que vieram de outros continentes, Carcaças de Abissais é uma fantasia urbana que reflete a essência plural do país e atravessa questões que tanto nos são caras hoje: as disputas políticas, a crise climática, o iminente colapso ambiental e, também, as contradições sociais que enfrentamos desde a invasão dos povos europeus nas Américas.

A saga fantástica transborda elementos que dialogam com a nossa psique, gerando uma experiência quase lisérgica de leitura, embalada pelos mitos e arquétipos que vivem há milhares de anos em nosso inconsciente coletivo. A sensação de estranheza familiar acompanha toda a leitura da obra, abrindo espaço para enxergarmos a nós mesmos em meio às cortinas de areia levantadas pelo tempo e pelos jogos de poder, e através das inúmeras narrativas históricas que buscaram recriar a origem de um território que sempre existiu. Frente ao diário perdido de Anchieta, Gabriela resume nosso pesar: “se isso aqui é real, a História do Brasil dos livros não passa de contos da carochinha”.

Ao mesmo tempo em que Carcaças de Abissais dialoga com as gerações contemporâneas, não será uma narrativa que envelhecerá com seus leitores. Poder, manipulação, violência, egoísmo e prepotência fazem parte dos recônditos sombrios da alma humana, assim como coragem, determinação, lealdade e empatia iluminam as esperanças que movem esta história, tal qual a história do mundo e a nossa própria.

Sem abrir mão de uma grande aventura que não decepcionará nenhum leitor de fantasia, Geo Amaral e Maurício Pessoa narram com maestria e fluidez a saga de personagens cativantes, gente da nossa gente, criaturas das nossas criaturas, que revelam a cada página as raízes encantadas do Brasil etérico, onde reside a essência do nosso povo e sua potência de resistência e transformação.

Camila Piva