Ler Cancioneiro da desilusão é embarcar em duas viagens. A primeira é a do narrador personagem, descrevendo vivências de um imigrante japonês que chega ao Brasil na segunda metade do século XX. A segunda é a do leitor dentro de si mesmo, à medida que o texto apresenta condições humanas universais, propiciando contemplações sobre a própria vida: a expectativa causada pela iminência do contato com o novo, a sensação de despertencimento, os caráteres braçal e moral do trabalho são temas que instigam tanto reflexões pessoais como a empatia com o imigrante que chega em terra estranha.
Do mesmo modo como esse leitor duplamente passageiro, no renga (連歌, “poema encadeado”), também as estrofes estão em um jogo de duplicidade. A estrutura desse gênero de poesia japonesa é tal que toda sequência de duas estrofes constitui um poema. Sendo assim, à exceção da primeira e da última estrofes, todas as outras formam dois poemas: um com a sequência de versos antecessora, e outro com aquela que vem depois. Dessa maneira, o renga maneja simultaneamente a repetição e a variação, mantendo uma unidade temática ao mesmo tempo em que modifica as imagens apresentadas.
Originalmente, essa poesia era composta por dois ou mais poetas, que escreviam cada uma das estrofes intercaladamente. E é apenas por isso que o texto de Karen Kazue Kawana é chamado “pseudo-renga”. Em Cancioneiro da desilusão, cada estrofe ajuda a revelar duas cenas da narrativa, ressignificando seu próprio sentido enquanto conduz a progressão da história. Os versos “um rapaz da cidade/com aspirações rurais”, além de promoverem o encadeamento entre as cenas, têm a capacidade de sugerir um cenário de ares idealizados quando juntos da estrofe anterior:
leio sobre flores
espécimes tropicais
plantar e colher
um rapaz da cidade
com aspirações rurais
E a de constituir um quadro de teor realista ao serem lidos com a estrofe que os sucedem:
um rapaz da cidade
com aspirações rurais
enxada em punho
pele queimada de sol
trabalho árduo
Assim, o texto de Karen Kazue Kawana exibe o fluir característico do renga: foca no presente, através dos poemas formados a cada cinco versos, enquanto realça a transitoriedade de todas as coisas no recontextualizar de cada estrofe.
Leonardo Reis