_sobre este livro
Há muitas maneiras de começar a falar sobre Cabeça. Por exemplo: este livro nasce em território brasileiro, no Sistema Único de Saúde pública, já com “um cacho de século”. Ou é um livro sobre o nascimento de M. e sobre não conseguir encontrar Marte no céu e achá-lo muito lindo. Ou uma tentativa de dizer que uma cabeça é dura e feita de pólvora, mas também que é elétrica ou um adorno sensível, mole no início da vida. Ou um livro em que “tudo passa/pela cabeça sexo/medo/mão coxa pele”.
Em todo caso, estes poemas de Maíra Matos se passam entre o SUS e a casa, entre o espaço público e o sonho, o prontuário e a roupa de astronauta. Ou, ainda, entre “um capacete / para uma cabeça perfeitamente adequada a grandes feitos” e “uma pedra com pelos”.
Com o anúncio de um batismo em primeira pessoa logo no início (“me chamo agora alice rocha”), seguido por imagens oníricas (“o nome veio em sonho”), cria-se a expectativa de uma narrativa centrada na voz de uma personagem que nos conduzirá. Mas à medida que avançamos, essa expectativa se desfaz. Na reunião de memória, inconsciente, testemunho, invenção e fantasia, é possível identificar a criação de um fluxo aberto, misto de ficção e realidade, sem ponto de origem ou culminância.
Isso aproxima este livro de Maíra Matos de narrativas experimentais em vídeo e cinema, como o filme Sem Sol, do cineasta e multimídia Chris Marker, em que imagens reais de viagens ao Japão e à África e relatos de cartas imaginárias jogam com o íntimo e o coletivo de forma fragmentária, sem o intuito de constituírem um testemunho pessoal ou um filme de ficção.
E em Cabeça, esses recursos cinematográficos aparecem na forma de uma narrativa, mais do que não-linear, ramificada. Continuamente entre aquilo que floresce e vigora e o que não vinga e morre: “era preciso escutar/as folhas crescendo devagar no lugar do coração/ /um dia derrubaram a árvore”. O estranhamento causado pelos versos e imagens de Cabeça se firma nesse parentesco indissolúvel entre nascimento e degradação: “colho as flores e os dentes para o jantar”.
Em versos como “os filhos dela morreram/nos dias que virão” ou “nos dois últimos anos, M. nasceu”, a confusão temporal contribui para essa sensação de que não estamos só avançando, mas retomando, começando agora, de novo. Com isso, Maíra Matos parece confiar no cíclico: “é certo que amanhece”.
Ana Luiza Rigueto