Investigar o corpo como um legista. Tratar o poema como uma dissecação. Captar a beleza na putrefação. São esses os eixos que constroem bruxismo e outras automutilações, estreia na poesia da professora e poeta Samara Belchior.
Apesar de trazer uma poética da intimidade, esta muito próxima, ainda, do incômodo, Samara se debruça sobre algo universal — a incompletude do corpo, ou a impossibilidade de mapear todo o aparelho sensorial que constitui um corpo. São poemas que, entretanto, buscam investigar um incômodo para além da dissecação, questionando conceitos como subjetividade e identidade que sobressaem dos processos fisiológicos retratados.
Dividido em três partes, “matéria macia feita de pele deitada”, “ampliar os cortes para saber de que tecido é feito o eu” e “estruturas porosas”, bruxismo e outras automutilações busca trabalhar o corpo em suas interrupções, trazendo como material poético joelhos ralados, narizes escorrendo e, até mesmo, o processo de embalsamamento de cadáveres. São textos que evocam principalmente o conceito de defeito, mas que se catapultam, partindo destes, para um exercício de elaboração — seja da experiência corpórea, seja da construção poética em si.
Nesse sentido, traça-se uma poesia em que se reconhece tanto a influência da ode ao silêncio proposta pela poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972) quanto a ideia de conscientização da morte, trabalhada pela escritora e agente funerária estadunidense Caitlin Doughty (1984).
Apesar da temática pesada — e dos versos curtos de Samara — percebe-se que a autora não se limita em termos de linguagem, explorando a disposição gráfica do texto e se atentando à escolha das palavras, reverberando a ideia inicial de se produzir um efeito físico em quem lê. Trata-se de uma escrita única, que carrega uma verve contemporânea, trazendo elementos performáticos em seu texto.
No final, o que se tem em mãos é uma estreia bastante potente de uma autora que busca não se inserir, mas, sim, se reconhecer dentro do texto a partir de uma visceralidade — palavra que pode definir bruxismo e outras automutilações em sua totalidade. Trata-se de um convite ao eu, o eu que se enxerga e que se tem consciência a partir de uma autópsia.
Laura Redfern Navarro
poeta & jornalista
@matryoshkabooks