A primeira coisa que salta à vista, em Avarias, é o manejo sábio do gênero. Aqui, o conto, dentro de sua natureza mais típica, concentra-se no clímax. A atmosfera se cria ao sabor dos ditos populares, dos conjuros; os personagens se apegam a rezas, rituais e estranhezas, com suas vivências ganhando dimensão simbólica. Nada disso vem à toa: a destreza nasce do grande senso de observação de Glória Diógenes, provavelmente conquistado em sua profissão, como pesquisadora e cientista social.
Há muitas marcas de força no livro: muita água, travessias, ímpetos de cavalos selvagens. E este é um livro que exala mormaço, transpira o bafejo contido no palmilhar do sertão — mesmo que também percorra outras paragens.
Em algumas histórias (sobretudo as narradas em primeira pessoa), há uma dicção poética tão intensa, que me senti levada a ler as páginas em voz alta. Elas pediam récita.
Avarias põe a figura feminina em evidência, dá voz a Marílias e Ismálias. É um livro sobre desvarios e irreverências. E, se “a loucura deve dar seus primeiros sinais quando o olhar é amigo da imaginação”, Glória Diógenes cria distopias para que enlouqueçamos juntos — nesta literatura ousada, que explode para que a vida não trinque. Escrever “coisas que não servem para explicar, nem pretendem mudar o mundo” é pura saúde.
Há ainda bastante música, versos de poemas, referências a romances que atravessam os relatos — e, daqui, seguimos o rastro para pressentir o tamanho da existência de tantos personagens. O conto, como um flash sobre as criaturas, faz, entretanto, com que elas reverberem e persistam conosco, por muito tempo depois. Talvez seja isso o que o narrador de um dos textos explicita, quando diz: “Cedo aprendi a cavar o silêncio”. O espaço da fissura tem a profundidade ideal para que o(a) leitor(a) mergulhe nos subentendidos e enlaces de Avarias.
Tércia Montenegro