Em Atlântico, Maíra Zenun nos presenteia com uma coletânea de escritos nascidos da experiência de se tornar imigrante e mãe, ao mesmo tempo. Isso, enquanto caminha pela importante reflexão a respeito do que é a própria poesia. Entre brisas, florestas, entidades, águas e expressões ancestrais, em ritmos, cadências e tonais vindos de longe, mas que não cessam nunca. Este tipo de narrativa, que nos é entregue em forma de escrevivência, faz deste livro uma obra íntima e necessária. O título, certeiro, permite convocar inúmeras referências que abrem espaço para reimaginarmos este lugar do meio que é o Atlântico. Uma leitura deliciosa, mas delicada, sobretudo porque Zenun nos leva a criar rotas de confluência e descompasso, ilhas de (re)encontro e desapego, em um outro tipo de luto, luta e celebração, num manto de limbo profundo que é esse mar, em todas as suas heranças ladino-amefricanas — pegando emprestado este conceito tão exato de Lélia Gonzalez.
Maíra Zenun denuncia, a partir da poesia, discrepâncias socioeconômicas sustentadas pelas atuais estruturas e hierarquizações veladas. Mesmo quando fala de amor, ela se junta a toda uma escrita consolidada, que escancara o que se passa em sociedades como Brasil e Portugal, assentadas no sistema colonial. Ao trilhar estes caminhos, a autora escolhe poetizar os efeitos nos afetos, da vida que gira em torno de tudo o que respira. Tanto que, em boa parte de sua obra, Zenun mergulha fundo na vontade de quem se camufla na paisagem de nunca ter sido criança, de nunca ter estado à beira da morte ou sufocada de medo, camuflada no sossego que não chega, nunca, e nos desejos mais desesperados, que insistem e esbarram nas pessoas que teimam em nascer poetas. Tem sido mesmo assim, desde o final dos anos 1990, a sua escrita. Como as sementes que cultivou e colheu em seu blog “Flores de Maio” (2007-2017), durante dez anos de versos e prosas deflagradas pelo deserto que assola mulheres negras, em muitas das batalhas de suas rotinas diárias. Em “Receita para podar felicidade” (2016), seu primeiro livro publicado pela Edições da Nêga, a autora bebe das águas assombradas pelas solidões impostas e violências deflagradas. Ao mesmo tempo em que começa a caminhar pela estrada de como é ser — e se tornar — poeta. Trajetória trilhada ao lado de muitas outras mulheres negras que, como ela, vivem carregadas de afetos, espinhos e palavras. E que, nesta obra específica, desabrocha de maneira surpreendente e originária.