Visto a cem metros, parece um morango gigantesco de plástico, mas não é. É apenas o meu coração, três quilos de massa muscular palpitante, e estava em muito mau estado naquele dia. Músculos, artérias, válvulas, cavidades, impulsos. Seguia pela rua arrastando-o atrás de mim, como faço normalmente. Era dia dezassete de março e podia sentir a aproximação da primavera. Uma pequena multidão caminhava a meu lado. Pessoas, abelhinhas, afadigadas nos seus murmúrios entre os carros e as árvores. A vida corria tranquilamente, todos os rios seguiam em direção ao mar, exceto o meu coração. Meia hora antes, segundos antes de sair do trabalho, tinha aumentado subitamente de tamanho — mais cinco centímetros de diâmetro — e desatado a bater em frenesi. Tinha enlouquecido.
R$50,00
_sobre este livro
O capitalismo nos atravessa o corpo e a alma e esse atravessar é sempre violento e desagregador. Não há quem escape. No caso do corpo da mulher há ainda a navalha do patriarcado em riste, disposta a expor-lhe as vísceras e, em assim sendo, a demonstrar o quanto é espaçoso, o quanto parece tomar um lugar no mundo o qual, supostamente, não deveria. Como uma espécie de Jack, o estripador, ele vem armado de sua lâmina e fazendo um grande estrago, coisa que é de todos sabida, coisa muito velha, mas que é combustível sempre renovável em seu pathos agressivo.
É um pouco disso que trata a fabulação de Judite Canha Fernandes em A lista da mercearia, novela que fala sobre como o corpo da mulher, sua subjetividade e afetos são desde muito cedo dados em sacrifício a brutalidades de toda natureza. Uma história de silenciamentos e perdas. E é assim que Alice, a personagem principal, dona de uma condição atípica, um coração que não cabe dentro dela mesma, recompõe os fragmentos de sua vida. Esse coração simultaneamente físico e metafórico, pesado de mundo, atravessa a paisagem narrativa com seus medos, desejos, desencontros, com seu estado urgente e excessivo. Um “morango” ou “monstrinho nojento” marcando um território aberto, a contrapelo dos limites histórica, social e corporalmente impostos.
Uma das vozes poéticas e narrativas mais interessantes de Portugal na contemporaneidade, Judite Canha Fernandes enreda o leitor em um labirinto construído com engenho e habilidade, no qual a voz da narradora se sobrepõe à voz de uma autora que gosta de itálicos diante de uma constelação de homens sempre iguais e diversos, uma sobreposição que muito bem lembra os movimentos de sístole e diástole. Tretas.
O corpo é um lugar demasiado.
Micheliny Verunschk
é escritora. É autora, entre outros de Geografia Íntima do Deserto (Landy, 2003), O movimento dos pássaros (Martelo, 2020) e O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021).
_outras informações
isbn: 978-65-5900-182-8
idioma: português
encadernação: brochura
formato: 13x19 cm
páginas: 90 páginas
papel: pólen bold 90g
ano de edição: 2021
edição: 1ª