A cineasta Maya Deren, uma vez, instada a circunscrever seus filmes na esfera do surrealismo, disse que não tinha qualquer intenção ou compromisso com o automatismo psíquico. Seu universo fílmico, segundo ela, era o da investigação de camadas mais profundas e de ângulos menos vislumbrados da vida. Em outras palavras, as de Gaston Bachelard, a imaginação poética – e as manifestações artísticas que dela partem e nela firmam afinidades – é uma ultrapassagem, antes de uma subversão, do real. No território da ficção escrita, a prosa poética dá licença irrestrita às imagens verbais: não-raro seu mote é o que se revolve na subjetividade das experiências.
Em afinidade com Maya Deren, mas também com outros criadores estéticos da imaginação irrefreável, Adelaide em terceira pessoa, de Claudinei Sevegnani, é um livro de perguntas. Elas orbitam assuntos como identidade, perda, deslocamento e assombro diante do estado das coisas. Mas, são perguntas-hidras; isto é, quando pensamos que as respostas se insinuam à sombra do texto, novas perguntas se levantam. “Aprende-se que a pergunta se desloca com a luz inerente; ilumina-se a si mesma, a pergunta constelar; ensina a si mesma, ao longo de si mesma, os estilos de ser dotada dessa luz para fora e para dentro”, disse Herberto Helder em uma autoentrevista, encapsulando como que sob lente microscópica o cerne de Adelaide: um ser fractal e refratado, em uma espécie de busca labiríntica por seus próprios vestígios. Labirinto: labor interior. É disso que se trata os caminhos desse romance.
Com uma escrita de beleza fremente, intercalando intensidades de claro e escuro, Sevegnani nos situa dentro desse enredo, providos no percurso com um fio de ouro ao mesmo tempo delicado e cortante nas mãos. A estrutura do livro é feita de elipses e retornos; são insistências que remetem aos dejavus e às imagens fantasmáticas, mas também aos enquadramentos de câmera do cinema, remetendo ao poder dialético da montagem, capaz de miniaturizar o imenso e de extrapolar o ínfimo. A repetição, nesse sentido, é um mecanismo importante no engenho dessa escrita: a autonomia do repetido, via insistência, não informa exatamente a diferença?
Pergunta que acende clarões, deixando um rastro de fagulhas. Adelaide está diante do maior enigma de todos, e nós também, porque a viagem se dá diante do espelho. Há, ainda, uns versos de Hilda Hilst que são cursos confluentes: “Dois cascos sofrendo as águas. E as mesmas perguntas.”
Léo Tavares