Açougue, talho, corte ou carniçaria. Instaura-se o processo administrativo com registros em palavras, imagens, sons parcialmente recuperados, parcialmente danificados desse lugar que transita entre o que já foi e o que ainda não existe. Um lugar que não é um lugar, um espaço entre mundos, um não lugar, um grande cérebro com sistema de irrigação próprio e cenários divididos por paredes de drywall. Um corpo-espaço. Nos cinco setores, um tour entre os diversos níveis, pisos, ambientes, salas de espera, de transmissão, de administração, enfermarias, laboratórios, poços, poleiros e departamentos específicos, encarregados para que tudo saia como deve ser.
E como deve ser? Panfleto e cartaz, já no início, indicam serviços especializados, planejados para satisfazer todos os desejos, sejam quais forem. E então imaginamos quais são, quais seriam. Transformação de desejos escondidos? Satisfação de desejos humanamente impossíveis? E então nos perguntamos o que é humano. O que resta de humano na construção de corpos, carnes, vozes, nomes. Que, afinal, animais somos. Corpos que emanam sons, corpos em estado líquido, corpos amorfos, corpos vírus e corpos parasitas. Morcego é ave? Uma voz pergunta. Penso em mamíferos que voam como aves, mamíferos que nadam como peixes, anfíbios que transitam terra e água, mais uma vez um estar entre.
Neste Açougue de pequenos prazeres, comércio de desejos forjados em nossa própria carne, somos ao mesmo tempo espectadores e cobaias desejantes de degustar a experiência. Helen Kaliski tenciona a voz persuasiva da propaganda que promete satisfação total a preços acessíveis com a voz aflita de quem habita esse espaço, seja inquilino ou trabalhador. Que sobe e desce os 57 degraus (são 57? São? Não são? Nunca consigo contar, os baiacus me confundem), que procura obsessivamente pelo corredor n.º 3, que espera por uma senha enquanto tem grampeado na pele o lembrete da morte. Se bem que habitar talvez não seja a palavra certa. Talvez seja mais como constituir, como células constituem um corpo e são, ao mesmo tempo, parte dele. Como o seu processo de divisão celular, seja por mitose ou meiose transfigura o próprio corpo em si.
Uma narrativa que é um experimento em palavras, espaços de silêncio, imagens figurativas, imagens abstratas; em que o ritmo muda a cada ambientação, a linha do tempo é apenas uma convenção (posta aqui em desobediência) e a velocidade do que é dito ora nos arrasta ora atropela. Helen nos dá uma escrita do fim do mundo, essencialmente existencialista, na qual o antropoceno se faz presente e real em cada relato, registro, carta, diário. O começo está no fim, e vice-versa. Estamos nos dirigindo para mais uma era de extinção onde só vão sobrar as bactérias, é o que diz, sem risco de errar. E que no fim, bem no fim, só o que veremos serão nomes frescos pendurados em ganchos de açougue, lembretes perdidos de carnes que um dia fomos.
Daniele Rosa