A primeira vez que vi Marcio Markendorf foi no início dos anos 2000, começando a faculdade… Era uma criatura rara, linda, enigmática, sobretudo apaixonante. Reencontro-me com ele, mais precisamente com seu verbo-afeto, duas décadas depois, unindo as duas pontas de nossas vidas literárias. E, neste lado de cá do tempo, seu livro de contos A lua fantasma, um hino de oblação a Caio F., demonstra exímio trabalho com as palavras, labor que em cada uma das narrativas deixa impressos os engendramentos operacionais dos afetos, melhor, dos afetos-outros, aqueles considerados socialmente inadequados.
Esses afetos geram sujeitos inconvenientes. E para tratar deles o autor lança (ou dá a) mão para outros, i.e., por debaixo da terra das palavras deste conjunto de textos, é possível vislumbrar, além de Caio F., Kafka, Raduan, textos sagrados judaico-cristãos, tragédia grega, muitos filmes, elementos onírico-insólitos e, claro, a vida acontecendo.
Marcio, com erudição — não aquela que afugenta o leitor, mas pelo pacto que mantém com a palavra —, trata do ordinário cotidiano: a iniciação do amor adolescente se inclinando a um corpo-outro-igual, como se observa em “O dia em que vi o cometa Halley passar”, “Lá, na cidade pecuária”. Ou ainda, as relações efêmeras entre homens (“Cicatrizes” e “Animais noturnos”); homens que amam garotos (“O pinguim”); amores gays (im)possíveis (“A lua fantasma”). Em linhas gerais, pergunta: pode doer o amor?
Em cada conto, o leitor não passa incólume aos eventos e às personagens, mas torna-se cúmplice de cada uma delas, seja por identificação ou sentimento de outridade; é convidado a penetrar o mundo das palavras e ver o outro, a dor do outro — o verbo-dor —, e, nesse gesto, ver a si mesmo nos solavancos da vida, nos caminhos sinuosos, nas tentativas de (auto)afetos, nas tragédias às quais todos estão submetidos; daí que o autor, num claro intento de não ferir mais ninguém, não manchar mais nossos olhos com mágoas e desafetos, tece, como as abelhas o fazem, um verbo doce e delicado, sem, contudo, nos sonegar a verdade do mundo. Em outras palavras, é a delicadeza inscrita no horror.
A lua fantasma perpetrado pela voz poético-narratológica de Marcio Markendorf, talvez, esteja indicando uma saída, uma fresta, outro caminho na contramão da hegemonia… Para descobrirmos outras vivências sociais — a educação pelos afetos — e, assim, escaparmos de caçadores sanguinários e vivermos como os leões: em comunidade.
Flávio Adriano Nantes
verão de 2023