A relação que Hoje, não? estabelece com o leitor é a do tensionamento entre o que acontece em cena, durante cada ato, e o que aconteceu para se chegar à cena. O encaminhamento proposto por Luciana Romagnolli prescinde de recordatórios e te coloca imediatamente dentro da situação, no presente, no agora da encenação proposta.
Originalmente escrito como peça de teatro, Hoje, não? torna-se aqui um híbrido de técnicas de criação escrita, com a sucessão de palavras e proposições de movimentos agindo como comentários tanto sobre as inquietações da autora quanto como reflexões críticas sobre sua própria construção. É um texto pelo qual as palavras falam umas com as outras e, desse diálogo, emergem vivas e ativas, cada nova linha sendo a catalisadora da linha seguinte.
Ao mesmo tempo em que apresenta um olhar profundo e intimista à “personagem” (as aspas são porque seria redutor demais classificar o que Ela representa em Hoje, não?), o texto se permite flutuações aparentemente aleatórias, digressões captadas a partir de algum outro estímulo que, após voltas e voltas, chegam no ponto nevrálgico a completar todo o quadro para, então, não há verbo mais ameno, esmurrar o leitor com a força de seu conjunto. Esse tipo de fluxo, tão próximo ao que lemos em autores e autoras diversos como Clarice Lispector, Elfried Jelinek e Thomas Bernhard, trata a palavra como algo concreto, quase tangível, afastando o efeito puramente factual da contação de história e ampliando o que elas são capazes de provocar. Daí que Hoje, não? por vezes interrompe a “ação” e se deixa experimentar com sons, fonemas, possibilidades de articulação entre as letras, ou mesmo a poesia visual de um escrito numa página que, ao fim, vai te chacoalhar.
Já desde o título as palavras e grafismos são coisa viva. A vírgula interrompe o presente. Hoje, não? É dúvida ou confirmação? Afirmação ou negação? Estabelecimento do presente ou questionamento do passado? Esse ponto de partida se relaciona diretamente com as questões levantadas por Luciana Romagnolli na essência temática do que ela trata. E se o livro começa numa perturbadora desconstrução do nascimento e da constituição do indivíduo, ele termina com esse mesmo indivíduo diante da finitude cósmica ante as forças naturais – a constatação mais primordial de que estamos todos aqui hoje e poderemos não estar amanhã. Entre um ponto e outro, há a vida. E há Hoje, não?.
Marcelo Miranda