Quadros em declosão
A declosão-do-Mundo começa aqui dentro… Declodir o olhar como experiência de abertura, retirada e destruição das molduras e enquadramentos criados pelo Mundo-Branco… Derrubada das cercas e retirada das clausuras.
Inventar molduras que transgridem e ao mesmo tempo quebram a lógica de repetição do olhar hegemônico colonizador. A arte de mostrar e esconder sem fixar a imagem dos corpos, interromper a narrativa que cristaliza e persiste durante a História. Pois, conforme Jota Mombaça e Musa Michelle Mattiuzzi, “a visibilidade é uma armadilha e a representação é um beco sem saída”. Recriar as nossas existências, inventar rotas de fuga em meio às múltiplas lógicas de capturas.
Por sua vez, as insurgências e revoltas ao longo da história do Brasil nos conta dos Malês, dos guerreiros Tupinambás, Anacés, Tupiniquis, Cariris… Os protestos espalhados pelo Brasil nos últimos dois decênios revelam as múltiplas faces do poder, da dominação e das formas de resistências por meio dos enquadramentos das teleobjetivas, angulares, macro, olho de peixe, olho por olho… Comprova, inclusive, que o monopólio da violência-legítima e simbólica é Branco. E que a noção de ‘não-violência’, por sua vez, é uma criação da situação colonial. O Mundo-Branco como essa força motriz colonial-capitalista-heteropatriarcal inventora do Outro.
Uma das funções da violência colonial no Brasil contra corpos-negres, dissidentes de gênero e empobrecidos sempre foi, por um lado, esvaziar o passado e impedir seu futuro por meio de floreios e perspectivas românticas da negação de sua verdadeira face genocida e extrativista e, por outro, perpetuar o desejo de exploração e a tentação de eliminação de populações inteiras. Ela se manifesta, inclusive, por meio da noção de ‘não-violência’ — face colonial onde a “paz” mais parece ter a forma de uma “guerra permanente”. A produção da vida, portanto, só pode surgir do cadáver em decomposição do Mundo-Branco.
A violência-emancipadora é a forma que os corpos-encurralados têm para responder às imagens coloniais reencenadas na contemporaneidade: lógicas dos Navios
Negreiros, da Plantation e do Cativeiro. Nas palavras de Achille Mbembe, a violência-emancipadora trata-se de “dar a morte àquele que se habituou a jamais a receber, mas a sempre a ela submeter outrem, sem limites e sem contrapartida”. É preciso impor, por meio da violência, uma redefinição e distribuição da morte. Ainda assim, a violência-emancipadora não estabelece uma simetria de poder entre os corpos, mas abre possibilidades do sujeito historicamente prostrado erguer-se por meio daquilo que Frantz Fanon chamava de “práxis absoluta”.
A inauguração de uma vida possível no em-Comum: o fato de sermos cada vez mais convocadas e convocados à questão central de nosso tempo: “abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo”, como nos desafia Édouard Glissant. A possibilidade de um bem-comum passa pela inevitabilidade da violência como um dos fenômenos da descolonização material, portanto, relacional deste Mundo-Branco que separa “nós” e “eles”.
Cada fotopoética contida neste livro é um elogio aos quadros em declosão, um exercício cotidiano de um olhar-opositivo. É uma rasura e uma brecha possível na afirmação insurgente de uma pluralidade e a necessidade de borrar fronteiras, habitar encruzilhadas com fogo e lentes. Enquadrar sem fixar. Fotografar constitui, ainda, a ação de pixelar os mosaicos das múltiplas trincheiras de luta e ao mesmo tempo aquarelar os rostos, deitar água como tática de desaparecimento e sobrevivência às miríades formas cotidianas de enclausuramentos.
Rômulo Silva