Ferrugem inicia-se com a descrição aparente de um procedimento: “serrar ossos com um faca de cozinha”. Parte de uma imagem-matéria-metáfora. Abrem-se os ossos, disseca-se a corrosão da matéria no corpo. Corrosão que é o próprio corpo. Que é existir e roçar o vazio: “dentro é o deserto”.
A artista-poeta nos dá o rastro, a borra, o escoamento seco-molhado-vazio-oco-borra de imagens e palavras que ocupam o entre. Ocupam na sua condição de vestígio. Dá pra pegar? A mancha na parede? As marcas identitárias conservadas nos dentes? Dá pra pegar quando morre? O que foi aquela vida?
Para Barthes, a imaginação poética é improvável. O poema é aquilo que não poderia acontecer em nenhum caso, salvo justamente na região tenebrosa dos fantasmas que, por isso mesmo, ele é o único a poder designar.
Se “dentro é o deserto”, e “dentro não tem dentro é seco”, é preciso “arrancar com a unha as carnes”.
Clara Machado busca a pulsação, e cria imagens-palavras que adensam e ocupam o deserto, que criam corpo, na condição de “fantasma roçando na carne”. Procura a carne, o rastro, a infiltração, o corpo. Há corpo? Osso? Carne? Existe isso que pulsa e marca? A marca fica?
Percorremos com Clara o que se infiltra na pele e marca. A artista-poeta quer guardar as marcas, criar memória: “já faz um tempo que eu coleto ruínas”. Busca com violência erótica esses rastros (da vida), como se ali houvesse algo de precioso. Constrói um universo singular, de imagens, palavras, relicários de sangue e ouro. Havia algo naqueles ossos, naqueles dentes?
Da masturbação no bidê. Da escada e da casa, onde o corpo habita e se faz presença perene. A infância, a casa, a avó, o pai e a mãe. Os ossos e cabelos que crescem dentro. Deve haver algo que fica, que mancha. Clara vive e olha a casa, a mancha que brota. Procura essa dureza líquida que vaza. O dente de leite, os buracos, as inundações.
A mancha é ferrugem, e jorra vermelho. A poeta quer fazer vermelho o deserto, vermelho sangue, vermelho-ouro. Inundar o corpo, o banheiro, a calha, o sol. Quer corroer. A mancha “expande suas fronteiras” até o entupimento.
Do corpo penetrado, corroído, entupido, os rastros surpreendem, ao final: dois poemas e fotografias de um trabalho performático de Clara. Tudo se ilumina. Com o corpo do pai, Clara cria-desenha-escreve na luz e indaga: “pode o espaço ser um pulmão cheio de terra?” parte da indagação para construir algo. Vivemos com a artista o momento em que se cria, luz:
“pode a gente jorrar luz. pode, pai, ser a vida clara.”
Maíra Matos