A cidade devastada de Ithalo Furtado está abarrotada de uma perturbação que parece nunca evaporar. Abarrotada das ruínas, das memórias, de um passado que insiste em estar ali. E é suposto que seja dita, aqui, dessa maneira: porque precisamos da poesia que fale da dor sem moderação. Que levante a camisa para mostrar a pele rasgada para desconhecidos. Que mostre a fratura exposta das estranhezas do eu com o mundo. Que fure a película do decoro com o odor de mijo, os vícios, as denúncias, a solidão, as caras dos afetos que poucos têm coragem de dar a tapa. Que seja, enfim, inerente ao humano. Porque é preciso coragem — esse milagre em tempos tão bárbaros, pandêmicos, genocídicos — para trabalhar a dor, manipulando-a sobre o cansaço das mãos. Manipular um produto tão hiperativo, cheio de ânsia, em poesia: é preciso coragem, e ela é visível no trabalho da linguagem poética de Ithalo, que constrói, em terreno tão vulnerável e tão árido, imagens sólidas, maciças, inteiras. Constrói, porque essas imagens se erguem e se enrijecem, mantendo-se de pé como se fizessem parte de um passado que sempre teve o propósito de estar ali, a fazer parte de um estilo seu, próprio e dominante. Toda uma arquitetura fantasmagórica, em vultos, de uma cidade devastada que mantém a sua sobrevida através do verbo. Uma cidade feita a partir do lado de dentro do peito até seu último muro, a partir da falta de um nome, de um indivíduo, de uma presença — e que tenta, aqui, recontar a sua história. Porque o poema cujo título batiza o livro traz os seguintes versos: “meu nome é uma desonra para os outros/um operário que se joga do alto do alicerce/um vizinho que bate à minha porta de robe/e pede um pouco de veneno”. Porque Ithalo traz a público uma cidade que poderia ser muitas outras, mas que é dita com todos os detalhes, cenas e fotografias, o curso de cada fato que se processa, como se personificada. Respira, passeia, sofre, não toma fôlego. É, sobretudo, corpórea, e fala a mesma língua que todas as cidades devastadas, feitas por pessoas devastadas. Uma cidade muda de nome: tango, blues e medo; tango pelo amor, blues pela melancolia e o medo pelo medo, completando as três esferas mais representativas do cenário do livro como um todo. Um poeta muda de nome: rebatiza-se, aqui, fincado rente ao chão, pisando firme no terreno nada devastado de sua literatura.
Amanda Vital