_sobre este livro
Poesia é observação. Exercício de olhar e descobrir (ou criar) a composição extraordinária do cotidiano e forjar implicações impensáveis ao ordinário. Por isso, a poesia é uma ferramenta versátil para analisar o ser humano em relação ao meio que o rodeia e indicar novas possibilidades. E Salobre é um excelente exemplo da utilização desse instrumento, pois os poemas de Thiago Scarlata investigam um desenrolar social para tipificar a contemporaneidade e propor uma poética particular a esse contexto.
É a partir do conceito de soro (solução de água, sal e açúcar, para hidratar e alimentar enfermos) que a primeira parte de Salobre explora a relação entre o homem e o ambiente. Uma relação travada na crueza e na escassez de um universo pré-urbano ou marginalizado pelo que é citadino, no qual o mínimo significa sobrevivência. A natureza provê a continuidade da existência (poemas “salmoura” ou “tutorial para caçar baleias”), não sem desespero (“saco de lixo”) e morte (“Francisca”). Mas a vida persiste para cumprir o objetivo de continuar.
A perspectiva desses poemas é de proximidade, espécie de close-up em pessoas e técnicas que desvenda a constituição de elementos e fazeres, sugerindo o detalhe do que é manufaturado. Ao mesmo tempo em que exemplifica essa escolha estilística, “Sangue branco”, último poema de Soro, também aponta à temática central de Salário, segunda parte do livro: a mecânica explorando e interditando o ambiente, impondo a migração ao urbano.
Nesse urbano (tomado por antenas, ruas e pedestres, carros e semáforos, ônibus e trens), o humano é desterritorializado (“as não-cidades”) e reduzido a mera engrenagem da máquina representada pela cidade. E, ao contrário daquilo que era próximo e manual, significativo apesar de sofrido, os poemas de Salário têm a perspectiva ampliada, uma grande-angular para abarcar a impessoalidade da vida em massa.
Sem origem, destino ou identidade, presa (quando muito) na roda-de-correr que é um salário, sobra a essa massa apenas sonhos extremos de individualização, como descrito em “atentado”. Ou restaria mais?
Encerrando o ciclo do livro, a terceira e última parte intitulada Salinas recupera o sal e o impasse do poema de abertura (“ para propor um desdobramento, que é a própria razão de ser de Salobre. Se, rodeados por água salgada, estamos entre morrer de sede ou “beber o sal / sentir o sal / viver o sal / até entender / o sal”, melhor beber, sentir e viver o sal do que resta para entender e encontrar nele a matéria-prima (essencial e impura) da poesia.
Maurício de Almeida