_sobre este livro
A primeira vez que vi Marilene foi um vulto surgindo do fundo escuro do palco do CEP 20.000 no Teatro Sérgio Porto em 2012. Eu estava pelos cantos da plateia, em pé, quando vi uma espécie de vulcão: uma mulher descalça, de jeans e camiseta, vociferando, cheia de modulações na voz, imagens fortes, palavras precisas, não agressiva, mas vulcânica: de vez em quando uma quebra, uma suavidade e, então, vinha lava, um pouco de calmaria e mais lava, sem gritos, mas com intensidade incendiária, de lava.
Depois soube que era professora. Quem escolhe essa profissão só pode ter um coração imenso, que articula libido de aprendizagem com desejo de compartilhar. Costuma ser da prática docente também uma volúpia de acolher o outro e sua diferença.
Não é por acaso que a temática aqui é rica de paisagens e abrange percepções intensas de perspectivas minoritárias. Quem vive e convive lidando com grupos diversos sabe o valor da diversidade numa floresta: todas as espécies são fundamentais para que a vida siga seu fluxo. Perder uma espécie pode ser o fim — por isso o desejo de que todas tenham acesso ao sol, à água, à terra.
Alegre? Sim, o fluxo da vida segue alegre em Marilene, alegria espinhosa, de Spinoza, que não desiste, não abre mão do sol, nem da chuva, nem do vento. A escrita desse vulcão quer mais, mais de tudo, mesmo quando parece querer só um abraço.
No final do rascante poema “As chacinas são as mesmas”, uma Marilene que viu demais diz que manda sua pulga estereofônica se banhar lá na cidade e pede que a arte a socorra. Não é ela própria essa pulga que traça desenhos virtuais em frente aos olhos de quem a escuta?
Posso dizer que a poesia aqui é de boca, para ser falada. E quem já viu Marilene em cena é capaz de ouvir sua voz ao ver suas palavras no papel. Isso é um valor a mais. Leia o livro e veja essa mulher no palco!
O corte dos versos indica a dinâmica de um corpo que vibra e cisma: às vezes curtos, como se o ar parasse ali, às vezes longos, como se a lente de uma câmera-corpo se abrisse.
“aqui quando tudo crescer e tiver muitos poetas publicando livros e eu sorrir para eles
como uma lanterna de gratidão”
Mesmo dilacerada, sua poesia não perde uma piscadela de humor, não usa salto alto. É poesia descalça, mesmo quando convoca bruxisticamente imagens e verbos que evocam universos operísticos. Alguns poemas têm o vigor de uma ópera torta, um morde e assopra, uma vertigem: num momento lâmina, noutro mel. Lindo! No meio da experiência caótica, apocalíptica, vem o amparo, algum amparo:
“a amizade é como goteira
ela vem devagar e fica para sempre”
O poema “A sereia velha no retrovisor”: linda bruxaria urbana transtemporal!
Alguns petiscos para degustação antes de cair dentro:
“(…) há bolinhos de chuva na lasca de um tubarão”
“(…) leve o cachecol, em Chapecó vai fazer frio
eu levei uma faca”
“(…) hoje a asa direita não quis mais nascer meu pequeno anjo
eu fui obrigada a castigar a esquerda para ver se ela acordava a direita”
Mergulhe sem moderação, asas vão se abrir.
Tereza Seiblitz