Em O avesso da casa, Ozias Filho reúne duas práticas e paixões: o instante poético e o instante fotográfico. Mas tal reunião não se faz por proximidade e semelhança, uma vez que, em casos assim, das duas, uma: ou o poema apequena-se em legenda ou a fotografia muda em mera ilustração. Ao contrário, a força deste encontro está em algo vizinho ao que Nietzsche denomina “páthos da distância”, no qual afirma-se “a vontade de ser si próprio”. Tanto que o autor, fotógrafo e poeta, tratou de rubricar as diferenças e as distâncias entre texto e imagem, destinando a cada qual lugar próprio na arquitetura da obra.
Neste quase diário da peste, o leitor não estranhe a repetição de palavras — silêncio, solidão, medo, olhos, janela, vírus, tempo, lugar (e outras análogas, tangentes ou adversativas) e de imagens vernaculares —, paisagem urbana, retrato, natureza-morta, abstração, interior de ambiente, documental —, pois tais procedimentos prestam a dar “um negativo do negativo da realidade pandémica” da covid-19, como diz o autor em sua apresentação.
Arriscaria a dizer que dentro e fora são os tópoi secretos deste “ensaio poético/fotográfico”, no qual, à rebours do sempre questionável senso comum, o fotógrafo olha para dentro e o poeta para fora. A voz lírica e o corpo confinados em “caixas dentro de caixas dentro de caixas” ou sob as “salvas ao vírus silêncio”; a outra voz que aciona e alimenta o diálogo poético submetida ao “silêncio do caos” e destituída de corpo pelas distâncias da mediação — e eis que o poema se faz “exercício de ver/através do olhar alheio”. O próprio olhar restrito à moldura da janela ou ao óculo da porta; o ato fotográfico en plein air sob interdição ou privado de seus claros objetos de desejo — e eis que a fotografia desvela o seu negativo, rascunha o seu ensaio sobre a cegueira física e simbólica. Do velar/desvelar os transes e os trânsitos entre o eu e o mundo, o poema aspira aos foras da realidade, ao outro, aos acontecimentos, às coisas, para além do deserto e da assepsia. De registro documentário da realidade fora, a fotografia converte-se em testemunho dos dentros da “bolha higiénica”.
Na cultura brasileira, como registra Claude Lévi-Strauss em Tristes trópicos, difícil ter a rua como o avesso da casa, pois “não se distingue quando se está dentro ou fora”. Neste sentido, para um poeta brasileiro, mesmo há tempos radicado em Portugal, a imposição abrupta de fronteiras nítidas e higiênicas entre casa e rua terá sido dos encargos mais custosos nesta sua participação involuntária na versão contemporânea do “congresso internacional do medo”.
Fernando Fiorese
poeta, escritor, ensaísta e professor