“Por quê?”, pergunta o menino diante do túmulo do pai. Primeiro, tentando se adequar ao papel do jovem órfão de quem esperam que traga a marca da perda precoce. Depois, como quem, aos poucos, se deixa tomar pela vastidão da pergunta, o nonsense da lápide em concreto frio, o nome talhado parecido com o seu e, de fato, o espanto que emerge diante da morte, da tragédia e seus não-ditos.
O que acontece quando uma pergunta vai se enraizando no peito a ponto de exigir o trabalho de uma vida?
“Uma peça autobiográfica é aquela que é impossível não fazer” é um pequeno bordão que partilho com meu amigo Rodolfo já há mais de uma década, em que vimos trocando nesse terreno movediço das criações que se dão na indiscernibilidade entre arte e vida, no território dos traumas e fantasmas. Não à toa são anos às voltas com tentativas de registros diante do fugidio da memória, à caça de pistas para completar as lacunas, a obsessão pelas diferentes versões, os sonhos, aquilo que emerge nos outros em lembranças, sustos, escapes, mágoas, suspiros, insights (porque um morto nunca é só nosso), as ressonâncias em livros, filmes (às vezes parece que tudo sintoniza com nossa paisagem interna) e, finalmente, a criação. Ela que, através de inúmeros exercícios, no formato de textos, oficinas, cenas, manejo e produção de arquivos, ficcionalizações, se torna este espaço possível para dar forma ao indizível, contorno a um vazio.
Diante dos silêncios e do tabu frente à morte, das lacunas em relação à própria história, da solidão e não-ditos impenetráveis do próprio pai, Rodolfo com pequenas unhas afiadas adentra essa paisagem escura e emerge dela como artista, filho, homem e pai, trazendo notícias de lá — da travessia? do trauma? do vazio? — para nós aqui, os ainda vivos.
Porque o que é aterrador é que tenhamos tão poucas respostas para a morte. E o que é maravilhoso é que tenhamos tão poucas respostas para ela e, por isso, a morte segue sendo, talvez, uma das experiências que mais produz vida naqueles que ficam. E lá se vão anos de trabalho. Trabalho de luto, de sentido, de suportar a falta dele e criar com isso. Galo índio. Celebro o nascimento deste livro, assim como celebro a jornada do meu amigo Rodolfo e seu menino de unhas afiadas.
Janaina Leite