“Gosto do limite tênue, da fronteira inespecífica, entre o singular e o comum, entre o particular e o geral, o único e o conjunto, o tempo presente e todos os outros tempos”, lemos em determinado trecho deste “pequeno romance”, como Maricia Ciscato o descreveu para mim. Papel de parede é de fato um livro curto, mas suas páginas se multiplicam e ganham densidade à medida que nos embrenhamos nas histórias de seus personagens — Camila, “símbolo feminista incongruente”, e Péricles, o namorado escritor.
A narrativa une o cotidiano no Rio de Janeiro durante o turbulento segundo turno de 2022, com recortes de uma infância em Curitiba e histórias de família vividas no interior do Paraná. Com habilidade, a autora consegue dar um contorno e agregar personagens díspares e momentos da nossa história política, criando um enredo envolvente que traz à tona, entre os meandros de relacionamentos afetivos, temas como fascismo, democracia e luto.
“A vida tem muitas formas. Uma delas é feita da experiência dos instantes. Dispensa romances e histórias épicas”. Na invenção deste mito familiar, acompanhamos a captura de instantes perdidos no tempo entremeados por, sim, algo de épico, em uma construção íntima e ao mesmo tempo coletiva. A própria Camila anuncia: “Agora sou eu que preciso te contar uma história. Mesmo que seja tudo mentira, pouco importa. Às vezes, para tocar o real, precisamos da ficção.”
Para tocar o real, Maricia se vale de muitos fios e instantes, dos mais triviais aos mais complexos, e surpreende ao resgatar o surgimento do movimento fascista na cidade interiorana durante o século passado. Como um contraponto à violência urbana e ascensão da extrema direita, a autora se vale ainda de cenas eróticas muito bem construídas, explorando as múltiplas facetas da personagem.
Camila, na contracorrente da história, segue mergulhando em mares desconhecidos, em busca de algo ainda não nomeado. Somos convidados a suspender nossas certezas e a penetrar nesses mares.
Patricia Dias