Desde a primeira leitura da prosa de William Eloi, através dos livros de contos A vertigem seguida da náusea e A calçada, percebi que ali se encontrava um escritor superlativo, que leva seu ofício a sério, como diria Hemingway. Neste romance, as qualidades literárias do autor subiram de patamar e ele entrega uma obra complexa, visceral e instigante. E também perturbadora.
Através do prólogo, um depoimento de um psiquiatra que recebe um manuscrito, recurso engenhoso usado na literatura francesa do século XIX, somos apresentados a Francisco Eriberto, que em primeira pessoa narra de forma alucinada sua vida em meio a um casamento frio, um emprego burocrático e ocasionais saídas com amigos e colegas de trabalho.
Porém o aparente marasmo é só uma casca, pois tanto a alma como a própria vida de Eriberto estão repletas de amargura, traumas e propensão à autodestruição e suicídio (como o próprio título do romance nos dá o spoiler), o que leva nosso anti-herói a uma jornada joyceana, cheia de sexo, farras, traições, drogas e álcool, em uma Natal decadente e hostil.
Eriberto desce, como Orfeu, ao inferno da cidade e de seus (des)encantos e também ao Hades de sua própria alma, relembrando feridas emocionais não cicatrizadas, como um abuso que sofreu na infância, a morte dolorosa do seu cão (quando constatou que Deus não existe), as primeiras (e desastradas) experiências sexuais, o relacionamento difícil com o pai e o irmão. Enfim, um prato cheio para Freud, Jung, Lacan e Foucault.
Mas aqui não se trata de psicanálise, e sim de — excelente — literatura. É através dela que William Eloi se faz impor com seu protagonista e que nos convida a descer aos infernos com ele. E em meio a tanta dor, solidão e hedonismo, fica claro que — para autor e personagem — a literatura, como investigação profunda de um mundo complexo, e também como ferramenta para autodescoberta, pode ser salvação e redenção.
Cefas Carvalho
Jornalista e escritor