Fiapos de memória ao vento, eis a poesia!
A poesia de Ariane Sapucaia filia-se a uma longa tradição de mulheres escritoras que, num exercício de luta contra o esquecimento, encontram na memória o seu lugar de abrigo e de conflito. Nesse sentido, as metáforas do baú e dos trapos, tão caras à construção desta obra, podem funcionar como importantes chaves de leitura para os poemas que compõem este livro. Abrir o baú, para que dele voem os trapos, é o gesto inaugural de uma voz fiandeira que, ao tentar ressignificar fiapos de memória, cerze versos, alinhava fragmentos de paisagem e os costura para tecer os fios do passado que se unem aos fios do presente.
Na mitologia grega, conforme lembra Yates, em A arte da memória, Mnemosyne era a deusa da memória e a mãe das Musas, numa linhagem feminina que aponta a indissociabilidade entre lembrar e escrever. No caso específico da poesia, a relação com a lembrança não deve ser entendida em termos documentais. É que a memória da poeta é uma memória inventiva, como indica este fragmento do poema que dá título ao livro: “eu guardo meus resíduos nem tão vividos / do baú voam os trapos / e eu tenho farrapos a contar”.
Abrir o baú, para que dele voem os trapos, é o ato de quem reconhece a leveza, da qual fala Ítalo Calvino, como um valor na poesia. Em contraponto ao peso do baú e de seus “resíduos nem tão vividos”, é o vento que enfuna versos e espalha trapos/fragmentos/memórias ao longo das páginas. Para acompanhar esse movimento, “é preciso sentir o vento enquanto / seu pai não volta a te alimentar pelo bico”, como no poema “memória de pelanquinho”, em que persona poética, criança e passarinho misturam-se em simbiose.
A memória, aqui, é ambivalente. Para tornar-se abrigo, exige o esforço consciente da persona poética, que se sabe “colecionadora de retraídos agoras”, e se desdobra nos gestos de abrir e de fechar o baú. Assim, “caminho nesse cômodo / abro obstruídas reminiscências” e “arrumo os soluços dentro, tampo a caixa” são movimentos complementares da persona que tenta ressignificar o passado e sobreviver ao peso do presente e, para isso, recorre ao exercício metalinguístico da poesia, enquanto olhar que se volta para a tessitura do próprio poema. Ao acompanharmos a abertura do baú e o voar dos trapos, deparamo-nos com poemas que (des)velam sua própria composição, numa seleção e combinação de fiapos de memória, e nos perguntam/convidam, como Drummond: “Trouxeste a chave?”
Elaine Rapôso
doutora em Estudos Literários