Isabela Figueiredo, escritora moçambicana de origem portuguesa, narra sua infância nas décadas de 1960 e 1970, na então colônia Lourenço Marques (atual Maputo), capital de Moçambique. Tais memórias são registradas em Caderno de memórias coloniais, um livro autobiográfico que revela, no âmbito afetivo, a ambivalência presente na relação com o pai, dada a paixão edípica por este, o que conflitava com o ódio pelo tratamento que ele dispendia aos colonizados, uma vez que atuava como capataz de um grupo de trabalhadores africanos a ele subalternos. O livro oferece um recorte singular da colonização moçambicana, em que o racismo, a violência e a miséria do povo africano compõem um cenário atroz. Portanto, a narrativa se dá como um testemunho da cena colonial e, ao mesmo tempo, revela um ponto subjetivo da cena inconsciente da autora.
Com base nisso, a pesquisa interroga a importância da arte de narrar como testemunho de uma situação de catástrofe humanitária que, neste caso, se refere à colonização africana. Os resquícios do racismo colonial, como bem sabemos, permanecem em todas as sociedades colonizadas, incluindo o Brasil, com o extermínio em massa da população indígena e a violência racial que lamentavelmente ainda atinge a população negra. A novidade desta investigação, no entanto, parte do fato de Isabela ser uma mulher branca e denunciar a violência colonial desde essa posição, o que permite falar da importância de o grupo branco reconhecer a história de maus tratos que seus antepassados praticavam.
O livro que se tem em mãos investiga de que modo a escrita de Isabela Figueiredo, por denunciar a branquitude que perpassa sua família, convoca à quebra do paradigma que concede aos sujeitos brancos o direito ao silêncio. O arcabouço teórico da psicanálise serve de sustentação para a hipótese de que a colonização é alienante também aos colonizadores, uma vez que o racismo cria um ponto invisível no objeto olhar, que se alterna entre a invisibilidade/exploração de alguns corpos e a ascendência ideológica de outros.
A ideia do trauma é aqui evocada para pensar a violência que incide sobre o campo do olhar, gerando o recalque e a negação de memórias que, se não forem recuperadas, podem continuar perpetuando essa mesma violência. Por fim, o uso da escrita como borda às dores do trauma, articulado ao gesto de tornar público o testemunho, levam a concluir que a narrativa memorialística de Isabela Figueiredo enlaça o caráter duplo do politikos e da poiesis, forjando-se como uma invenção decolonial.