ela pede meu corpo enquanto a leio. e perde o dela enquanto escreve. não, não é que perde: despedaça. no princípio era a queda — nos lábios, no tabuleiro de xadrez. pensei acompanhar a semântica da gravidade despindo o corpo rumo ao chão, da pele à palavra. mas ela pede que meu corpo também caia, na paisagem da cratera que se forma depois do salto —
alto. carimbando de passos a areia, na praia daquela sereia “obscena, porque vista”. toda uma geologia-relâmpago especializada no baixo-relevo que se apaga à onda mais próxima — em blues e sal.
lanço-me a ela, então. no escuro, tom do céu da boca. e lá está a anatomia do tombo: o corpo acidentado. caio nos poemas como na gravidade solar que assola mulheres e janelas abertas, especialmente aos domingos.
Nicole, ali, na margem do caderno, no bilhetinho súbito. como se esboçando no verso de um guardanapo a última esperança para noites em que letreiros rosa-néon dão seus derradeiros suspiros. e aí que, quando a gente vê, esse papel amassado no fundo da bolsa, com marcas de batom e vinho, é, sim, a salvação debochada da meia-noite.
na cratera, ela conta do que permanece, já que nem os ossos. permanece a “delicadeza do que se desespera”, que suspende o tempo para contemplar, desde a urgência das galinhas que correm ao abrigo da chuva, até o “passar os dedos de leve sobre os pratos de porcelana”. permanece “desejar como quem só tem língua”, que desconfio ser o mesmo que uma mulher dizendo eu. ponderar então entre o tato e o caco — da porcelana ou da palavra.
permanece uma anatomia outra, estilhaços do corpo que se despedaça. é dele que ela conta: entre serpentes, pálpebras, consultório de dentista, aranhas, bocas e cômodos oníricos. e tudo isso é, também, o que o corpo se torna. ela diz “não sou uma mulher”. e reivindica, para si, a matéria para além dos devires. funda uma arqueologia da fratura do corpo, que quase devora, “assim, meio sem querer, até os ossos”, o meu. que seja “lenta a digestão”.
escrevo oferecendo meu corpo, como se fosse papel no fundo da bolsa. desconfio que seja essa a linguagem singular dos cacos de vidro, dos ossos quebrados e das questões ontológicas do tilt. ela desaba ou debocha em néon?
escrevo para ver se a pego no pulo.
Aline Cibele