Quando comecei a escrever este texto, lembrei-me de minha avó, que morreu repentinamente enquanto dormia. Eu só tinha dez dias de vida, mas posso imaginar que disseram “pelo menos ela não sentiu nada”, como é comum nesses casos em uma tentativa tola de consolar os familiares. O título do livro é também um verso que aparece em dois poemas, por insistência e resolução, e até quando não está presente o verso ecoa nos outros poemas, mas sua leitura nunca é a mesma. E essa é a mágica da poesia. Ser igual e ser diferente o tempo todo. Da primeira vez que li Não quero morrer enquanto durmo, imaginei o animal que Gilles Deleuze compara ao escritor, escritora, no caso. Um animal à espreita que nunca dorme, atento a tudo ao seu redor.
Com seus sentidos aguçados, Constança decifra as mensagens secretas das notícias de jornal, descartáveis, lê as entrelinhas de uma ecografia ou de um calendário com desenhos de Miró. Imaginei a autora insone, de pijama velho, porque dormir é se entregar e quem contaria a história dos ursos d’água? Dos moluscos azuis, dos bichos e dos seres-humanos em extinção, senão ela? Desperta, a poeta diz temer a escuridão. E ela o diz porque consegue enxergar a obscuridade da nossa época e é isso que torna o livro tão contemporâneo.
Mesmo que boa parte destes poemas tenha sido escrita durante a pandemia, não há dúvidas de que é um livro sobre o extremo agora e, ainda assim, sem riscos de obsolescência, pois a autora consegue nos tocar em nossa humanidade. Com coragem, ela derruba qualquer neutralidade para emitir sua opinião, que denuncia desde ícones como Serge Gainsbourg até abusos nefastos do mundo neoliberal. Ou mesmo para replicar as palavras da atriz estadunidense Joanne Woodward, apagada pela máquina patriarcal de engolir mães, “se eu tivesse de fazer tudo de novo, talvez eu não tivesse filhos”. Depois que li este livro pela terceira vez, lembrei-me da poeta C.D. Wright, que disse: “O poema nunca dorme, a não ser que eu durma, pois se me deparasse com ele dormindo, o capturaria. E então seria isso, minha presa esplêndida”, e pensei em Constança de vigília fazendo emboscadas para capturar poemas nos lugares mais improváveis, como no fundo de uma geladeira vazia. Felizmente, nossa poeta está viva e ela sente muito. Muito.
Carina Gonçalves