“Morrer faz parte da vida, não da morte: é preciso viver a morte”, diz Rosa Monteiro. Recordo-me dessa frase seguidas vezes ao ler os poemas iniciáticos de Yane San. Esse livro é sobre cair, livro de cânticos ao fim e ao silêncio. Parece que somos convidad@s a começar pelo fim, nesta terra em que se aceleram as partidas, em que falamos àqueles que já não estão, ou em que uma voz conversa impessoal e anônima com suas despedidas. Enquanto leitor@s, talvez, nos metamorfoseamos às pedras acompanhando o fluxo das línguas dos rios, corredeiras súbitas. Livro ritual das partidas, que celebra ou memora as mortes que não puderam ser vividas, os mortos que não puderam ser contados ou palavreados. Não sabemos se estamos no centro de um velório [seremos nós mesmos, leitor@s velados e revelados?] ou diante de um bueiro grande como a boca de Satã, faminto por nos arrastar em sua queda ao centro de um mundo. Um pouco errantes, quem sabe, nos labirintos do sonho de angústia em que um homem cai entre os ferros. Não dá pra contar um sonho a alguém que foi embora e, no entanto, se o poeta fala a alguém que partiu, somos nós quem escutamos porque ainda estamos aqui: vivas! Aqui onde somos mais, jamais um, nem dois/Ou menos/Fundamento de mãos dadas.
Yane San estreia com o fim, e parece ser este o oroboro que seus poemas portam: Para o buraco vão as sementes e os mortos. Que suas palavras germinem um começo, o despertar de uma voz estranha. É como torcer um rio a fim de que volte todo à nascente. Pensando desde aqui, também os mortos podem fecundar começos, caso possamos encontrar as sementes que nos deixaram e enterrar aquelas que queremos vingar. Como as pedras e as pupas que guardam em suas presenças o tempo larval, estático, silencioso. Que este livro guarde a palarva de outros livros a escrever, como tocar a flecha e lançá-la bem no olho da história. Pois que na ambiguidade de Yane San começar pelo fim, há também esta outra ambiguidade da despedida,
o desejo não é um lugar: é uma partida.
Partamos com nossos mortos, ou torçamos os velórios e os rios para nos enterrar: germinantes, nascentes.
Mariana Castro