Para a gente-peixe que pisa e nada em muitos mundos, fazer poesia é ancestral.
Eu vou desobedecer a ciência moderna para falar de nós. Para mim, cada verso faz parte do que vivemos desde que nos encontramos em Brasília e descemos juntas para a Chapada dos Veadeiros. Foi ali que passamos a nos chamar de irmãs. Foi ali que soubemos a radical diferença entre o mundo branco, feito de lume, de luz; do nosso, de fogo, de espírito, de terra.
É nessa certeza que sorrio, ou choro, ou tenho raiva e força. É aqui que a sinestesia dos meus sentidos se sente segura para ler e saber que não há ambiguidade colonial na polissemia das palavras. Nossas palavras são “ciência, arte e civilização ancestral”, como diz Pirá. E você vai poder senti-las e talvez até ficar com medo ou recuar, porque “Não queremos nada além de tudo de volta”.
Talvez você recue com esses versos porque a colonização produziu essa diferença entre indígenas e não indígenas: de língua, de religião, de economia, de cosmologia, de política, de identidade. Mas eu sou devota (não sou cristã, sou makuxi, e isso significa que meus deuses são outros) de que tudo o que foi forjado dentro desse tempo de 523 anos (e contando) pode ser contestado, se acaso alguém realmente quiser.
E há muito o que podemos fazer coletivamente, uma trilha dada aqui pela poesia é a luta contra o garimpo, contra o folclore, contra a língua e a mentalidade portuguesa que ainda se pensa soberana.
Um corpo wassu-cocal atravessa o Atlântico, e volta. Mais certa, mais ancestral, mais forte, curando toda contradição com ritual.
Então estamos aqui, na nossa terra ancestral, às vezes nadando juntas, pisando em terras inimigas que nosso dna lembra, mas estamos juntas, e eu quero seguir assim, no caminho e nas águas dessa poesia cocal.
Para a gente-peixe que pisa e nada em muitos mundos, fazer poesia é ancestral.
Trudruá Dorrico