Rafael Senra é um verdadeiro complexo fazedor-pensador de muitas coisas… É músico, quadrinista, inventor audiovisual, professor universitário e, claro, escritor. Além de multidisciplinado é, também, indisciplinado e disciplinado, nos melhores sentidos que essas palavras podem nos oferecer. Quando Rafael me presenteou com uma cópia ainda não revisada de Meu personagem no divã, eu fiquei muito curioso para saber qual seria a invenção rafaélica da vez. Mas, ao mesmo tempo, fiquei com uma quase-certeza de que teria pela frente uma experiência, no mínimo, tecnicamente bem-acabada. Chamo de “experiência tecnicamente bem-acabada” aquela que, de algum modo, cumpre os riscos de suas possíveis e impossíveis pretensões declaradas. No caso de Meu personagem no divã, há uma pretensão, já exposta no título, de se criar uma metaficção em diálogo com incertezas (em sentido amplo e último, incertezas psicanalíticas, já que postas em voltas e reviravoltas de divã) de determinados pensamentos cunhados na tradição de uma “desconstrução moderna”: aqueles que colocam em xeque apreensões supostamente objetivas e assertivas do “real” (seja esse real biossocial e/ou bio-individual) e nos levam a rasurar os limites entre realidade e ficção, clínica interior e clínica exterior, literatura urbana e documento urbano (no caso diretamente conectáveis ao cotidiano da cidade “real-ficcional” de Juiz de Fora).
Ao mesmo tempo, o romancista evita cair em uma exposição forçada de um universo teorético simplesmente projetado e projetável em forma romanesca (como se a arte se fizesse instrumento para a divulgação das “ideias do autor”). Buscando dominar as técnicas do suspense e do gênero policial, Rafael Senra termina por nos oferecer uma narrativa que, fundindo uma coesão estrutural verossímil (com unidade de tempo, espaço e ação) a situações absurdas, nos leva, em ritmo progressivo, a nos deixar navegar por suas ondas de mistério… E, o mais relevante, convida o leitor a ser pensativo sem ter que suportar (pelo menos, suportar sem risos) algumas chatices típicas das grandes maçadas intelectualoides. Muito de outro modo, trata-se de um romance que, pretensiosamente, quer fazer a gente poder ficar um tanto inteligente sem ser (e sem querer que a gente seja) uma gente chata. Pretensão que, em minha pequena perspectiva, foi realizada com muita precisão. Sem dúvida, um ponto alto entre as grandes estrelas dessa vasta e multidisciplinada/indisciplinada constelação rafaélica…
André Monteiro