A história começa: a minha, a sua, a de um menino. Ele tem um corpo de onze anos e acha bom ter essa idade. E então sonha. Sonha entre as melodias de músicas francesas e palavras que narram as feridas e cicatrizes de uma guerra (inventada?).
Marcelo Bourscheid nos presenteia com páginas que nos roubam um pouquinho de ar a cada palavra que nossos olhos leem avidamente. É uma guerra que nos transporta para os delírios de um menino e sua família fadada a um tempo em que as dores são inventadas para além das perdas, das lacunas e das ausências. Um tempo congelado.
A escrita de Bourscheid se corporifica mansa por trás de nossas retinas. Um espetáculo inteiro que se monta diante de nossos olhos e nos lança para cenários carregados de humanidade — uma humanidade cruel e árida. Mas, ainda assim, uma humanidade que se apoia em palavras que despertam a necessidade de cultivar a esperança dentro de nosso peito, para que não tenhamos, assim como um de seus personagens, que “esquecer o medo, fingir”.
Essa dramaturgia parte da leitura das obras de Valter Hugo Mãe. E, com maestria, Bourscheid desloca elementos dos romances desse autor português para uma nova narrativa. O resultado: uma paleta singular! Junto com esse menino, inventamos coragem para tentar descobrir o desfecho da vida (sonhada?) desses personagens, ao mesmo tempo em que nos flagramos percorrer nossa própria história, nossas próprias ausências e nossos primeiros-beijos-nunca-dados.
Acredito ser um traço marcante — esse, de Bourscheid — de nos transportar para dentro de suas dramaturgias como se fizéssemos parte da tinta que compõe seu tinteiro.
Com o avançar das páginas, me pergunto a todo momento se também sou inventada por alguma alma boa e se, por um simples ato de coragem, também não posso me inventar corpo que sonha durante tempos sombrios.
Do cão fez-se o dia é um respiro bom, apesar da guerra. É um quadro bonito, ante um estupro coletivo. São os cachos ruivos da gêmea que dorme pra sempre, enquanto a outra segue. É uma música de Roberto & Erasmo Carlos como trilha sonora para um pai inventado que trava suas batalhas enquanto uma guerra termina. É Bourscheid, do início ao fim. E gostamos. Porque é bom assim.
Araraquara, 05 de abril de 2023.
Airen Wormhoudt
dramaturga e atriz