Eu gosto muito do que o Knewitz escreve. Sempre gostei. Desde quando li seus primeiros textos. O Knewitz sempre tentou alçar voos para além do convencional. É um autor de grande inventividade, de arrojo estético, que não tem medo de que absurdo e o delírio contaminem suas narrativas. E agora, após um livro de contos e um romance, me chega às mãos este Viagem ao redor do umbigo, uma novela. E o Knewitz mais uma vez surpreende. Primeiro, pela força das imagens que nos entrega; depois, à medida que lemos a obra e nos abrimos à senciência. Uma senciência, diríamos, literária, se é que isso é possível (acho que é). O livro faz um apelo, a todo instante, aos nossos sentidos. É sinestésico. Por vezes, delirante. Alterna capítulos em prosa com outros que são pura prosa poética. É um livro cambiante como os cômoros, as dunas que surgem no espaço desta narrativa e que, sabemos, são modificadas com o vento. E a novela-duna de Knewitz também muda sua forma quase que a cada capítulo.
Em alguns momentos, há um clima de O Louco do Cati, de Dyonelio Machado, outro autor gaúcho que fez dessa região um espaço para a viagem de seus personagens. Há também alguns vestígios, ecos, do sofisticado Assim na terra, de Luiz Sérgio Metz. Knewitz estabelece um diálogo com dois dos mais ousados escritores de seu estado e de nosso país.
Na obra, as vidas de dois solitários personagens, Cego e o jovem ciclista, se cruzam e o segundo — que afirmava ser o umbigo a “finalidade última da minha jornada, a razão e motivo” — acaba por socorrer o primeiro, que parecia morto no cume de um cômoro. Esse encontro é marcado pela alteridade, por um momento de rara beleza. O ciclista deixa sua individualidade de lado e acolhe Cego: “Ele senta na bicicleta. O umbigo desaparece. Um irmão gêmeo toma forma no meu útero que nunca existiu”. A partir daí, os dois se juntam na travessia. Mas logo Cego, levado na bicicleta, começa a perturbar o colega com suas profecias. Torna-se uma espécie de jovem Tirésias, a prever uma pátria caótica, coalhada de fanáticos, fascistas etc. Vemos também as sombras de um passado marcado pela violência, e isso se dá durante um sonho de Cego, no capítulo “Operação El Condor”: “crianças de porcelana mortas ao longo da praia”, crianças de “boquitas pintadas”. Nesses trechos o livro parece ganhar um tom de crítica política; a operação Condor, conduzida pelos militares e patrocinada pelos eua, sequestrava oponentes políticos do regime e seus filhos aqui no Brasil. As boquitas pintadas no trecho citado parecem estabelecer, ainda que de leve, uma aproximação com o experimentalismo do argentino Manuel Puig em seu romance Boquitas pintadas.
Portanto, é válido dizer: Viagem… não é literatura fácil. Este livro, aparentemente pequeno, se expande em suas possibilidades interpretativas e exige de nós aos menos duas leituras para absorver boa parte de sua grandiosidade. Mas a leitura (ou leituras) e a travessia que fazemos com Cego e o ciclista, tenho certeza, serão gratificantes a quem nelas se aventurar.
Paulo Sandrini