A fome de ver (de Carlos Orfeu) devora a Língua e regurgita este livro, em que as coisas trocam de pele, renovando os próprios nomes (mas bem longe dos nomes próprios) em territórios de aparente desordem, mas de novas interfaces entre o ser e o estar. Os poemas são passagens de nível, oferecidos a certas operações do olhar, em que florescem novas ordens sob toda a desordem em revolta; os poemas são desovas de matéria absorvida e devolvida, em ciclos de morte e vida, numa poesia de rejeitos, dejetos, restos de naturezas-mortas, cacos aparentemente irrecuperáveis, das pequenas partes móveis do grande fractal da realidade. Para alguns, aqui talvez coubesse ao poeta (ao colar nele um rótulo de Midas) reconstruir as cenas das coisas destroçadas com alguma nobreza artificial; porém, para esses, Orfeu frustra espetacularmente as expectativas, porque não interessa a ele restaurar nada, como naquela arte japonesa de recuperar (com fios de ouro) as porcelanas espatifadas, mas, ao contrário, exaltar justamente a quebra em si, a queda existencial na qual cada caco febril exibe seu próprio brilho, cada pedaço solto do real reemerge, na festa difícil de uma nova gênese, mas absolutamente necessária à sua poética — como se os próprios ossos e fósseis trocassem de lugar com a carne, assumindo o protagonismo naquilo que entendemos por “vivo”. Na dança das belíssimas imagens que cria (sempre o butô, nunca o balé), é na zona de cinzas que os contrastes do preto e branco fazem mais sentido. Pois aqui Orfeu extrai “vida” (na Língua) justamente como um anti-Midas. Este é um banquete de formigas que, depois da fartura das migalhas e das sílabas, canibalizam-se entre si. É a revoada de aves sem asa, alheias ao céu alto, afeitas ao asfalto, mas ainda assim aladas, pela via da Palavra. Mastiguemos pois, com ele, estes poemas. Orfeu pode até ter saciado um dos olhos, mas no outro persistirá (esperemos) sempre a mesma fome de ver, com a qual — e pela qual — este volume mesmo veio a lume, sob o facho simultâneo de algo entre a luz negra e o raio-x, como se a superfície pudesse espelhar o lado de dentro: olhemos (ao lermos), saciados e com fome, ao mesmo tempo.
Alexandre Guarnieri