Paco, ainda criança, passeava com sua irmã quando viu, pela primeira vez, um cu. Era de um cachorro. “Aquilo é o cu, minha irmã disse. E isso todo mundo tem. Menino e menina. Fiquei pensando nisso que era novo pra mim, com nome curto e todo mundo tinha. Cu.”
Arrisco começar essa orelha colocando logo o cu na mesa. Posso ouvir os risos nervosos ou o brusco fechar do livro ou, pior, o seu abandono com violência na prateleira, somado a gritos de impropérios. Mas por que essa palavra de duas letras causa tanta repulsa, vergonha, timidez, pudor, culpa? Por que o cu é tão mal falado? O que ele fez?
Segundo afirmam Deleuze e Guattari, “o primeiro órgão a ser privatizado, removido do campo social, foi o ânus”. A citação é retomada em artigo do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “O medo dos outros”, no qual ele lembra o mito ameríndio de Pu’iito, um ânus com vida própria. Um dia, as espécies animais pegaram e repartiram Pu’iito para que pudessem ter um ânus e, assim, não mais defecassem pela boca. Conheci o artigo por meio da admirável filósofa, professora e escritora Marcia Tiburi, que o citou após proferir o que deveria ser óbvio: “o cu é laico”.
O cu foi o escolhido para ser esculhambado, como se não fizesse parte do corpo, como se não precisássemos dele para uma bela função vital: libertar a nossa merda! Mas sabemos do fascínio que, como todo tabu, ele provoca. E provoca porque tem terminações nervosas que são capazes de gerar prazer. Na peça, Cume é justamente o nome do espaço criado por Paco, já adulto, para desmistificar o cu: “Precisamos falar. Sem medo. Só assim vamos es-cul-pir. Ou seja, construir uma relação saudável com o cu”.
Escrito por Filipe Isensee, Cume é um relevante e portentoso texto que traz a desmistificação da linguagem, no tocante a um tabu sempre acompanhado de censura, intolerância e, por vezes, maldição. Faz a gente (re)ver o cu sob novas perspectivas e, sobretudo, rir, não do cu, mas de nós e do nosso preconceito. Precisamos ter coragem de perguntar e não reproduzir o que está dado. E não há melhor lugar para isso do que o palco, mesmo que ele esteja dentro da nossa cabeça.
Essa peça está muito além de fazer uma apologia ao cu. Ela é quase uma metáfora do que reproduzimos e ditamos como comportamentos que geram uma série de estereótipos culturais e de gênero e, consequentemente, de falta de respeito pela existência d_ outr_. E como mudar? “O que muda, o que pode mudar, é o nosso olhar. Dar ao cu um lugar de afeto.”
Inez Viana