“Cuidado com aquelas que vêm de uma geração de mulheres silenciadas”, pensei eu depois de entrar em contato com a poesia de Naiara Reis. “Para cada três bocas que emudecem num século, vinga uma no seguinte que vocifera”.
Vociferar, “falar com cólera”, define o Dicionário Priberam. “Clamar, bradar, exclamar”. Nas palavras relacionadas, sugerem-se ainda “estrondear, gritar, escarrar”. “Sangrar”, digo então a mim mesma, em silêncio, na urgência de estender um pouco mais a lista. Essa urgência, descobri-a no seu mais fundo enquanto lia este Mulheres que sangram.
Com uma dicção poética a um só tempo íntima e voraz, Naiara atravessa estas páginas como quem vem de longe. Do seu corpo se levantam outros, de tantas outras mulheres, cheias de “desejos sufocados”, “fêmeas fartas espremidas dentro do meu peito”. Na sua voz se ouvem ecos, “um coro de vozes ancestrais”. Mesmo a mudez ganha timbre aqui — nesse caso numa espécie de performance do vazio, quando no poema “Muda” a autora nos convida a olhar não só para o abismo do grito, mas também para o abismo do silêncio. Da mordaça.
Essa é uma das grandes belezas de Mulheres que sangram. São figuras reais que encontramos nos versos, são meninas e mulheres com as quais nos identificamos em alguma medida, que escancaram tanto nossa ira e nossa insubmissão quanto nossos medos, vergonhas, fragilidades, contradições. A ambivalência de Joana e Amélia — uma se impõe pela luta, enquanto a outra resiste aquietada —, esse limbo entre duas que “brigam entre si”, ele é lugar onde muitas vezes também nós nos vemos.
Com Simone de Beauvoir, aprendemos que “não se nasce mulher, torna-se”. Com Naiara, esse tornar-se vai se desdobrando em palavras, numa busca que não passa jamais ao largo de reconhecer em toda cicatriz uma memória de ferida, um testemunho. Essa é a rebelião a que se propõem as mulheres que sangram, que vociferam. Delicadíssimos, seus corpos se erguem — ferozes. Prestes a “domar oceanos, arriscar o engano, desnudar o céu”.
Mar Becker