Os debates em torno do Projeto de Emenda Constitucional n.º 478/2010, conhecido como “PEC das Domésticas”, sintetizam as principais tensões que caracterizam o Brasil do século XXI. Eles revelam posições radicalmente diversas sobre questões tão centrais como o trabalho e o gênero, a raça e a desigualdade, o crescimento econômico e a vulnerabilidade social. Em seu conjunto, os posicionamentos divergentes sobre o trabalho doméstico — atividade que encapsula, de maneira particularmente aguda, as múltiplas contradições da sociedade brasileira — oferecem uma radiografia poderosa do mosaico político-ideológico que o Parlamento brasileiro representa.
Larissa Cristina Margarido aborda a complexidade desse tema com coragem, inteligência e rigor. Utilizando o referencial da análise de discurso crítica e a perspectiva da teoria decolonial, Margarido nos convida a olhar com mais profundidade o sentido desse embate parlamentar. Seu estudo cuidadoso dos argumentos aponta para as conexões profundas entre posicionamentos políticos e perspectivas ideológicas, situando-os no quadro mais geral do processo de radical transformação da vida material e simbólica a que se tem chamado globalização.
O olhar crítico de Margarido se volta também à academia, à sua função social e aos limites constitutivos de sua forma de construir conhecimento. A autora sustenta que é preciso “combater as perspectivas baseadas na presunção de que a objetividade e a neutralidade, bem como o individualismo e o formalismo, e a produção de ideias abstratas e desincorporadas, sejam parâmetros adequados e suficientes para a análise de práticas sociais, econômicas e políticas”.
À profundidade da análise e à agudeza da crítica, Margarido adiciona a segurança do estilo. Seu texto é de leitura prazerosa, acessível e cativante mesmo para quem não for familiarizado com o campo do direito. A conjunção da amplitude do tema com a clareza da escrita faz com que essa seja uma obra agradável e útil a quem se interesse por política, direito, sociologia, estudos de gênero e de raça, relações de trabalho, decolonialidade, discurso, poder e justiça social.
O leitor tem em mãos uma obra sólida e instigante que ajuda a desvendar o dito e o não dito, o manifesto e o oculto que se instalam entre o discurso e o silêncio dos discursos parlamentares. O estudo de Margarido é um convite à reflexão profunda sobre o Brasil, sobre as raízes de seus intricados desafios e sobre novas perspectivas para enfrentá-los.
José Garcez Ghirardi