Na cicatriz-livro-diário Mais uma casa de bonecas, segunda parte da Trilogia d’Ela, a escrita de Maria Lucas é revelada a nós por um processo de fazimento e de entendimento dela própria no mundo.
Ela, pronome pessoal do caso reto, que por vezes se mostra no cotidiano da artista-autora como prótese sentimental — tatuagem — marcada abaixo de seu pescoço, é também a travesti, a personagem e a corpa-sobrevivente das páginas da ferida-livro-diário Esse sangue não é de menstruação, mas de transfobia, por conta agora de ser reescrita transcentradamente como alguém que tem sede de viver a tão sonhada vida, apesar d’Ela estar limitada — como toda gente — a viver dentro do grande coma CIScolonial do dia a dia no mundo.
Ser agora fugitiva de uma antiga casa civilizatória binarista gigantesca localizada no topo de Santa Teresa numa nova casa — semelhante às casas coloridas de brincar recordadas de sua infância — próxima aos Arcos da Lapa, ambas na cidade do Rio de Janeiro (Brasil), não será garantia d’Ela não se deparar novamente com o pacto da cisgeneridade — nomeado por Narcisismo pela autora-artista —, porque, quando Ela quer apenas esquecer da existência da demarcação exaustiva de seu gênero nesse novo espaço, ele será recordado e posto em questão imediatamente pelos novos moradores cisgêneros de uma forma brusca e dolorosa, quase como uma violência física, causando mais desconforto e dor para Ela. E assim o mundo inteiro vai vivendo constantemente numa grande FICÇÃO POLÍTICA ENCARNADA, onde a régua da cisgeneridade — entre outras réguas — atua em peso, o tempo todo, traçando formas de horror que vão desde desvalidar e inferiorizar até negar e matar as experiências e a legitimidade da identidade de gênero d’Ela.
Sob uma ótica transfeminista, Mais uma Casa de Bonecas ecoa — em sua narrativa — a ausência de solidariedade, a perda de oportunidade de entendimento do lugar que Ela ocupa e a recusa de sua presença em lugares inteligíveis que muitos feminismos radicais transexcludentes — e também movimentos LGBcis — assinalaram ao longo de décadas. Mas, afinal, por que a cisgeneridade como estrutura delirante tem tanto medo d’Ela? Porque Ela desafia a forma cisgênera de como o mundo funciona, bem como desestabiliza a organização de certas coerências corporais demandada pela cisgeneridade. Ela é inassimilável à cisgeneridade, em outras palavras, a qual recusa a entender a diferença de sua corpa em seu mundo civilizatório binarista. E o entendimento da consciência da diferença d’Ela e de sua capacidade política deveria ser agregador, porque desagregador é a ideia de negar justamente a diferença em prol de uma suposta igualdade que para se consolidar precisa excluir.
Mas, então, para onde Ela vai? Às multidões queer, para fazer de seu corpo-ouvido um samba corpo-coro que pulsa e grita por vida.
Hilda de Paulo