“orelhas servem para ouvir” (não confundir com ovelhas)
Tocam os sinos do cemitério ao lado de casa. “Orelhas servem para gente ouvir”, você me disse, e penso que estas orelhas vão acompanhar para sempre o livro, andando de mãos dadas com ele. Então estas orelhas estão coladas, a não ser que a leitora decida cortar, é uma opção. Um livro é uma obra de manobra.
Este Kyrialles é uma viagem no tempo. Na entrada, o título-esfinge, e logo em seguida a recusa à clausura de Ferlinghetti. Este livro é povoado por muita gente. Contei 56 nomes próprios: santas, poetas, monges, parceiras, presenças que convivem no livro numa equivalência-pêndulo. Haroldo, Juliana, Merton, Olga, Suzuki, Blake, Torquato, Silesius, Dorothy, Daniel, Roque, Gabriel, Maria, Tzu, Cardenal, Érica. Todos juntos convivendo, todos fazendo companhia no seu poema, fazendo companhia no seu caminho. E esse caminho também trama assombrações. Os poemas desfazem o que se pensa puro e santo para a experiência real do corpo, como em “para parra: (…) e sigo feliz assim/peidando e rezando”, ou “o anjo do Senhor/apagou com seu/próprio cuspe/o QRcode colado”, e ainda, “ler antes de transar/uma santidade/a três”, até chegar à síntese luminosa: “hálito: você é/o que/você come/é o hálito/que faz o monge.”
Mizael, será que este livro pode te levar a uma cela? E não me refiro à cela dos monges — você nos lembra: “todo monge é um preso político”.
Este seu Kyrialles é o próprio coquetel molotov lançado na porta de igrejas que dissimulam que estão limpas de mundo, “os inquisidores não olham para cima (…) se vissem ficariam loucos/ateariam fogo/nos seus próprios corpos”.
O seu livro é sujo porque é direto, é sujo e é limpo como as mãos de alguém que acabou de fazer uma faxina. É também sujo, limpo de gozo.
A presença das mortes em grande parte dos poemas, luto e suicídio, os assassinatos de Jesus Cristo e de Dorothy Stang — neste momento em que estamos vivendo, já há dois anos de epidemia, a cada morte, dentre os três de governo do extermínio, fazem Kyrialles vibrar com sede de vida e voo.
O livro é um encontro entre línguas. “Deus também/entende gíria”. Rua e liturgia. Grego e iluminações da Ásia. Este Kyrialles é ágil e, ao mesmo tempo, denso, transita pelos séculos do crucifixo, ao sonho da borboleta. E é testemunha da atenção e dedicação de Mizael às vidas que inventam línguas e saídas impossíveis, seu Verbo é Rimbaud e “a santidade é inútil sem a maldição da poesia”.
Júlia Rocha