O velho é o livro de estreia de F. K. Bettiol. Sua narrativa brevíssima, caleidoscópica, híbrida, entrega fatias mínimas de pontos de vista variados a respeito do personagem-título, sobre quem, por fim, sabe-se tão pouco.
A representação crua de algumas experiências de envelhecimento — os limites do corpo e da mente, ambos dando sinais evidentes de cansaço ou falência — soma-se aos limites das relações entre os personagens. Qual a relação entre pais e filhos, esposa e marido, viúva e memória do morto? A falta de nomes próprios ajuda, por um lado, a despersonalizar o velho e os personagens que gravitam ao seu redor. Por outro lado, permite a inevitável projeção de sujeitos sociais e de suas características, coisa que o enredo tênue é capaz de desfazer, aqui e ali, ao dotar os personagens de traços únicos, como é o caso da cuidadora, pouco envolvida com o velho de quem, no entanto, deveria cuidar.
É mesmo sobre o velho, o livro? Ou sobre os que veem o velho, sem desejo de enxergar, de escutar, de cuidar, de limpar? Talvez duas respostas sejam possíveis, na leitura e em releituras. Afinal, o texto conciso parece convidar à releitura, a vislumbrar nos silêncios o que os personagens desejariam ter dito, o que planejaram dizer, mas não foram capazes ou não tiveram coragem de fazê-lo.
O personagem-título começa a ser mostrado por suas exterioridades, seus resíduos, seus dejetos. Só depois é que a narrativa acrescenta um ponto de vista mais particular: o do próprio velho, com sua intimidade, seus poemas, suas reflexões e páginas frustradas. Não deixam de ser, essas páginas, resíduos de uma vida vista depois da morte, como restos definitivos. Não mais escatológicos, são densos e enigmáticos. Convites, mais uma vez, a ler e reler, descobrir sentidos, montar o quebra-cabeças textual de outras maneiras, encontrar um fio para o labirinto de fragmentos.
Qual relação quererá o leitor estabelecer com este velho, de papel e tinta? Essa relação, se intensa, trará à tona experiências da vida real, feita de corpos, cheiros, memórias e afetos. Apesar de sua concisão, ou talvez justamente por causa dela, o texto parece impelir à reflexão sobre a realidade. No silêncio do branco das páginas, o convite para a participação e para o envolvimento do leitor.
Milena Ribeiro Martins